Na guerra, a primeira vítima é a verdade. A antiga frase atribuída a inúmeros autores define muito bem o curso dos acontecimentos que levaram muitos países a entrarem em guerra, principalmente nos últimos cem anos. Num conflito armado, cada lado quer contar a sua história e glórias e desmerecer o inimigo. É por isso que representantes de nações democráticas, comunistas, fascistas e o que mais for inventado sempre vão utilizar discursos confusos em períodos de instabilidade.
Isso acontece hoje na Ucrânia e na Rússia, que há mais de um ano estão em guerra. Fora as verdades de cada lado, uma vítima material notória no início dos embates foi o Antonov An-225 Mriya, destruído em 27 de fevereiro de 2022. Os ucranianos noticiaram que o ex-maior avião do mundo ficou irreparavelmente danificado após um ataque russo com mísseis ao aeroporto de Hostomel, nas imediações de Kiev.
Até onde se pesquisa na mídia ocidental, nenhum meio de comunicação procurou o Kremlin para se explicar sobre a destruição do An-225. E se ninguém pergunta, que isso importe ou não, Moscou não precisa responder. Sobre o combate em Hostomel, os dois lados informaram (na Rússia com menos detalhes…) que foi uma tentativa das tropas russas de iniciar a tomada de Kiev, plano que acabou fracassado após a forte resistência dos militares ucranianos. Era um momento da guerra em que a Rússia havia penetrado em profundidade no território da Ucrânia em direção à capital, mas acabou repelida na mesma medida em pouco tempo – hoje o conflito está concentrado no leste da Ucrânia.
Agora, no fato mais recente relacionado ao finado An-225, a justiça da Ucrânia aceitou aceitou uma acusação, em 5 de abril, contra Serhiy Bychkov, ex-CEO da Antonov, por negligência pela destruição da aeronave. Até agora ninguém ouviu Bychkov. Não deu tempo, ele foi preso no mês passado.
Promotores ucranianos aceitaram a acusação do SBU, o Serviço de Segurança da Ucrânia, que alega ter provas de que Bychkov não aprovou uma ordem para o An-225 voar para Leipzig, na Alemanha, dias antes da guerra começar. Outros cargueiros pesados da frota da Antonov, por outro lado, voaram para o aeroporto alemão, que hoje é base provisória da companhia ucraniana.
⚡️Ex-head of Antonov company charged with negligence in case of Mriya aircraft destruction.
The ex-head of Antonov State Enterprise, Serhii Bychkov, was charged with official negligence leading to the destruction of the Mriya aircraft, Ukraine’s Security Service said on April 5.
— The Kyiv Independent (@KyivIndependent) April 5, 2023
O SBU diz que o Mriya tinha condições para deixar a Ucrânia antes da invasão russa. O serviço ucraniano também reclama que o ex-CEO da Antonov não estendeu o contrato de seguro do avião, o que gerou US$ 1,14 milhão em pagamentos aos seguradores.
Além do ex-CEO, outros dois diretores de alto escalão da empresa estatal ucraniana também foram detidos pelo SBU no mês passado devido à destruição do An-225. Os ex-funcionários da Antonov podem ser enquadrados na Parte 2 do Artigo 114-1 do Código Penal da Ucrânia, que pune “obstrução das atividades legais das Forças Armadas da Ucrânia e outras formações militares durante um período especial, resultando na morte de pessoas e outras consequências graves”. Os três acusados podem cumprir até 15 anos de prisão.
Por que o An-225 não voou para fora da Ucrânia antes do ataque russo? Essa é a pergunta que vai perdurar pelo ar e as redes até o fato ser totalmente esclarecido. Mas qual lado vai contar a história?
Obviamente, mesmo com toda complexidade operacional, o An-225 poderia ser um ativo valioso para transportar equipamentos no esforço de guerra na Ucrânia. O avião carregava 285 toneladas de carga. Uma capacidade enorme, assim como o alvo em suas costas. O espaço aéreo do país no leste europeu virou uma “No-Fly Zone” e avião algum decola sem os russos ou os ucranianos detectarem, pequeno ou grande. Imagine então o maior do planeta?
Quando o avião foi destruído, o presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky divulgou um vídeo comentando sobre a destruição do Antonov e prometeu reunir esforços para reconstruir a aeronave – e cobrar a conta de Vladimir Putin.
O An-225 foi um avião que colheu porções de recordes impressionantes e escreveu uma história e um currículo magnífico. A aeronave com seis motores foi construída originalmente para carregar “nas costas” o Buran, o ônibus espacial da União Soviética, e terminou a carreira gerando milhões de dólares para a Antonov transportando cargas pesadíssimas ao redor do mundo, inclusive no Brasil.
A despeito da performance inigualável, o An-225 recebia poucas contratações comparado aos outros aviões gigantes da Antonov Airlines. No período recente, a aeronave realizava algo entre 10 e 12 operações por ano. E como se sabe, avião parado é prejuízo certo (de novo, imagine então com o maior avião do planeta?). Era uma enorme peça de publicidade para a clássica marca criada por Oleg Antonov (que nasceu em Moscou…), mas talvez não tão rentável com seu tamanho sugeria.
Por que o An-225 foi deixado para trás? A destruição de um dos maiores símbolos da Ucrânia foi um acontecimento que gerou enorme consternação – e mais um motivo para a Ucrânia receber apoio. Mas na guerra, a primeira vítima é a verdade. A Rússia pode ter celebrado a destruição do Mriya como um objetivo militar. Ou talvez não, foi ela (a URSS) que bancou a construção do avião no passado. A guerra de tiros e narrativas é um campo de batalha complexo e dinâmico, com armas e discursos de longo alcance e precisão que atingem a carne e o coração.
Para qualquer lado, a foto do Antonov despedaçado pode gerar diferentes emoções e conclusões. Voando ou não, o gigante avião ucraniano não merecia ter o fim que teve numa situação que nem deveria ter começado.