Há quase 34 anos, o que deveria ser um espetáculo para o público entusiasta da aviação e um momento de exaltação e prestígio da indústria aeronáutica europeia acabou em desastre. No dia 26 de junho de 1988, um jato Airbus A320 recém-adquirido pela companhia aérea Air France caiu diante dos olhos e câmeras de milhares de espectadores durante o Habsheim Air Show, na França.
Foi um acidente chocante, sobretudo pelo fato de o A320 ter estreado no transporte comercial somente dois meses antes e ser considerado um projeto disruptivo. Uma tragédia como essa, ocorrida em tão pouco tempo de serviço, poderia colocar em cheque o futuro da aeronave que depois de três décadas se tornaria o jato comercial mais vendido do mundo com mais de 12.000 unidades entregues.
A aeronave com registro F-GFKC era o nono modelo A320 concluído pela Airbus e o terceiro exemplar incorporado na frota da empresa, que recebeu o aparelho somente dois dias antes do acidente.
Naquele fatídico dia, o A320 em questão havia sido escalado para o voo 296Q da Air France. Era uma viagem de demonstração para passageiros e promoção da então novíssima aeronave da Airbus, que havia estreado no serviço comercial a cerca de dois meses. O trecho começou no Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, e rumou para o Aeroporto Basel-Mulhouse, no leste da França, onde a aeronave embarcou 130 passageiros.
A maioria dos ocupantes a bordo era formada por jornalistas e pessoas (incluindo várias crianças desacompanhadas) que haviam sido sorteadas numa rifa para voar no avião. Sob o comando do jato estavam o capitão Michel Asseline e Pierre Mazières, piloto-sênior da Air France que naquele dia acompanhava o trajeto atuando como primeiro-oficial. Ambos eram muito experientes e somavam até aquele momento mais de 10.000 horas de voo e 20 anos de carreira na Air France.
O plano previa que o A320 voasse para o Aeroporto Basel-Mulhouse, decolasse novamente e sobrevoasse em baixa altitude duas vezes o aeródromo de Mulhouse-Habsheim, onde acontecia o show aéreo. Em seguida, o jato faria um voo panorâmico ao redor do Mont Blanc e depois retornaria para Basel-Mulhouse para desembarcar os passageiros e posteriormente voltaria a Paris.
Depois de terminar a sequência de inicialização da aeronave em Basel-Mulhouse, Asseline ativou o sistema de alto-falantes para informar os passageiros: “Senhoras e senhores, olá e bem-vindos a bordo deste Airbus A320, número três da série da Air France, e que está em serviço há apenas dois dias. Em breve decolaremos para um pequeno voo turístico com partida no aeroclube de Habsheim, onde faremos dois sobrevoos para demonstrar a continuidade da aviação francesa e, em seguida, faremos um tour pelo Mont Blanc, dependendo das condições climáticas e do tráfego aéreo. Desejo a todos um voo muito agradável”.
Às 14h41, o voo 296Q da Air France decolou da pista do Aeroporto Basel-Mulhouse e virou para o norte em direção a Habsheim, que ficava a apenas cinco minutos de voo. Os pilotos precisavam rapidamente ter contato visual com a pista onde seria feito o sobrevoo a tempo de descer de 1.000 pés (304 metros) para 100 pés (30 m). Entretanto, eles pareciam estar confusos sobre a localização do aeródromo que sediava o evento.
“Você está a oito milhas náuticas de lá, você logo verá, ali está a estrada”, avisou Mazières. Uma autoestrada que passava por ambos os aeroportos servia de referência visual aos pilotos. “Vamos deixar a autoestrada à esquerda, não é… é à esquerda… não, à direita da auto-estrada”, disse Asseline, conforme ficou registrado no gravador de voz do cockpit.
Às 14h44, Asseline comentou com seu colega no cockpit: “Aí está o aeródromo, está lá, você entendeu?”. Nesse ponto, eles estavam a apenas um minuto da pista, então Asseline puxou os manetes de volta para marcha lenta dos motores e colocou o avião em uma descida rápida. Do outro assento, Mazières ajustou os flaps e baixou o trem de pouso.
Foi neste momento que o capitão do A320 observou que os espectadores no evento não estavam alinhados ao longo da pista 02, mas sim ao lado da 34R, uma pequena pista de grama que cruzava a 02 em um ângulo de 40°. No último minuto, o piloto virou o jato ligeiramente para a esquerda para se alinhar com a pista 34R.
Momentos depois, o A320 se aproximou de 100 pés de altitude, mas Asseline não controlou adequadamente sua taxa de descida. “Ok, você está a 100 pés aí, assista, observe”, disse Mazières. “Cem metros”, alertou o sistema de rádio altímetro da aeronave, que continuou com os avisos sobre altitude enquanto o avião descia: “Cinquenta. Quarenta. Trinta…”
Asseline conseguiu estabilizar a aeronave para o sobrevoo quando estava a apenas 30 pés (9 metros) acima do solo, muito abaixo dos 100 pés previstos no plano de voo, e iniciou o sobrevoo sobre a pista. Foi então que os pilotos perceberam que havia uma floresta além de área de escape do aeródromo.
Ciente da situação de risco, Asseline avançou os manetes dos motores ao máximo para recuperar a altitude. No entanto, são necessários cerca de oito segundos para os turbofans do A320 acelerarem da marcha lenta para a potência total. Mas os pilotos não tinham esse tempo de sobra. A aeronave sobrevoou a pista no que parecia uma elegante manobra e foi direto para a floresta. “Merda!”, gritou o capitão, no que foi a última palavra capturada pelo gravador de voz antes da queda.
Evacuação perigosa
O que a princípio parecia um pouso forçado, logo se tornou em algo muito pior. Ao irromper sobre as árvores no fim da pista, uma parte da fuselagem do A320 rasgou e a asa direita se partiu, derramando combustível que imediatamente se incendiou. De longe, os espectadores do show aéreo observaram incrédulos e filmaram uma bola de fogo se elevando da mata.
A aeronave parou depois de percorrer cerca de 400 metros. Apesar da violência do impacto e das chamas, nenhum dos 136 ocupantes da aeronave morreu de imediato. O problema a seguir seria o fogo e a fumaça que invadia a cabine. Além disso, muitos passageiros estavam atordoados depois de baterem suas cabeças nas costas dos assentos à sua frente após o impacto no solo.
Comissários de bordo e passageiros correram para as portas do avião, mas logo eles notaram que seis das oito saídas do avião estavam totalmente inutilizáveis, bloqueadas pelo fogo ou por galhos e troncos de árvores que se amontoaram ao redor da aeronave e impediam a abertura completa dos escorregadores de evacuação.
Não só isso, nem todos os ocupantes conseguiram sair de seus assentos. Foi o caso de um menino tetraplégico que foi deixado na cabine e uma menina que não conseguiu soltar o cinto de segurança. Uma passageira que já havia chegado à saída da aeronave voltou para ajudar a garota, mas a fumaça e o fogo impediram o resgate. Os três morreram.
Capitão contestou relatório do acidente
A queda do voo 296 foi manchete no mundo todo. Estações de televisão exibiam a exaustão vídeos do acidente captados de diferentes ângulos pelos presentes no show aéreo. Os céticos em relação ao A320 rapidamente tiraram suas próprias conclusões e culparam o sistema de controle computadorizado fly-by-wire da aeronave, que teria falhado e resultado na queda.
Hoje altamente disseminado na indústria aeronáutica, o sistema fly-by-wire era de certa forma uma novidade na aviação civil em meados de 1988. Até aquele momento, os únicos aviões comerciais que contavam esse recurso eram o supersônico Concorde e o Airbus A300.
Se tais acusações fossem verdadeiras, seria desastroso para a Airbus e para toda a indústria aeronáutica da Europa, que via no A320 a chance de superar o sucesso do Boeing 737. A investigação do acidente também seria um enorme desafio para os investigadores do Bureau d’Enquêtes et d’Analyses pour la Sécurité de l’Aviation Civile (BEA), órgão francês equivalente ao Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA) do Brasil. Eles precisavam ser o mais objetivo possível na análise, sabendo que suas conclusões poderiam destroçar a reputação do fabricante europeu.
Após uma longa análise dos dados de voo e dos vídeos captados no momento do acidente, o BEA determinou que todos os controles de voo e os motores do A320 responderam normalmente aos comandos dos pilotos.
O relatório final sobre o acidente concluiu que os pilotos voaram muito baixo, em velocidade muita lenta e não conseguiram ver a floresta a tempo de efetuar um desvio. Isso aconteceu por que os pilotos avistaram a pista onde seria feito o sobrevoo muito tarde e para corrigir a rota eles tiveram que colocar os motores em marcha lenta para descer mais rápido.
Consequentemente, ao nivelar o avião e chegar na posição alpha max (o ponto máximo de inclinação do nariz do avião para cima sem estolar) o A320, devido ao arrasto aerodinâmico, desacelerou rapidamente até cair. Em outras palavras, foi uma forma de culpar os pilotos, especialmente o capitão Asseline, pelo acidente.
O capitão Asseline, anteriormente um dos maiores defensores da Airbus, tendo inclusive concedido uma série de entrevistas elogiando o A320 em nome da Air France, não concordou com o relatório do BEA. Ele alegou que um erro no computador do sistema fly-by-wire o impediu de aplicar o impulso necessário para a aeronave ganhar altitude.
Em protesto, o piloto francês encerrou sua cooperação com os investigadores e passou a fazer aparições na televisão acusando a Airbus e a autoridade francesa de acobertar as reais causas do acidente e transformá-lo em bode expiatório.
No rescaldo do acidente, surgiram acusações de que os investigadores haviam adulterado provas, especificamente os gravadores de voo da aeronave, que teriam sido substituídos por versões com dados suprimidos. Porém, nenhuma evidência concreta sobre a acusação foi apresentada. Posteriormente, o capitão Asseline foi condenado a 10 meses de prisão por homicídio culposo.
O copiloto do voo 269Q, Pierre Mazières, dois funcionários da Air France e o presidente do aeroclube de Habsheim também foram responsabilizados pelo acidente, mas receberam penas mais brandas e não foram encarcerados. Mazières, inclusive, continuou voando para a Air France, enquanto seu colega teve a licença de piloto cancelada na França.
Como acontece em todo desastre aéreo, a queda do A320 deixou aprendizados e levou a criação de novas regras. A principal delas e que permanece em vigor até os dias atuais é a proibição de passageiros a bordo de voos de demonstração em shows aéreos, algo que hoje parece óbvio por questões de segurança, mas que naquele tempo não era levado em consideração.