Quando o gigantesco A380 com matrícula A6-EON girou vagarosamente sobre seu corpo para tomar a cabeceira 27L de Guarulhos, minha mente parou e me levou silenciosamente ao final do século 20. Como editor de uma revista de aviação, acompanhei toda a história do majestoso Airbus quando ele ainda era um projeto e se chamava “A3XX”. Lembrei de todas as promessas do fabricante europeu e do desdém da Boeing. Lembrei da beleza incomparável do primeiro voo, em Le Bourget, quando as radicais manobras aéreas do já batizado A380 deixou parisienses, gregos e troianos de boca aberta. Agora, viajando para cobrir mais uma edição do Tokyo Motor Show, a convite das montadoras Honda, Nissan e Toyota, era minha vez de aproveitar ao máximo todos os detalhes dos voos com o maior avião do mundo. Olhando pela janela do deck superior da aeronave, perguntei a mim mesmo: “Será que voa bem?”
Tecnicamente conhecido como A380-861, o A6-EON tem o número de série 188 e voou pela primeira vez em 19/03/2015. Como os demais aviões dessa viagem, está configurado com 14 assentos na primeira classe, 76 na executiva e 426 na econômica, totalizando 516 lugares para passageiros. Os A380 voados estavam equipados com quatro motores GP7270 da Engine Alliance, uma parceria entre a estadunidense General Electric e a canadense Pratt & Whitney. Esse motor de 76.500 lbf foi desenvolvido a partir do GE90 e do PW4000 para concorrer com a Rolls-Royce e seu RR Trent 900.
O comandante deixou o “Oscar November” rolar alguns metros na pista, empurrou as manetes para frente, os quatro motores da EA urraram e passaram a despejar impressionantes 306.000 libras combinadas de empuxo, iniciando a corrida do avião rumo a Dubai, a primeira perna da longa jornada até Tóquio, no Japão. Sentado no assento 18A da classe executiva, poucos segundos depois tive a resposta: o A380 decolou para a viagem de 12.215 km na prova de Taubaté e subiu com mais vigor do que eu estava acostumado a ver nos voos do Boeing 747-400. Não era para menos. Esses motores são tão poderosos que, voando a 1.000 km/h com toda a força, entregam uma potência total equivalente a 670 carros Ferrari com motor V12 de 6,0 litros.
Voos de ida: Guarulhos, Dubai, Narita
Minha primeira impressão ao entrar no Airbus A380 é de que tudo nesse avião é gigantesco. Mas antes disso tive uma surpresa, pois, ao embarcar no voo EK 262 da Emirates eu imaginava SUBIR para o deck superior, mas tive de DESCER alguns lances de escada! Em seguida, um longo túnel na ponte de embarque proporcionou uma leve subida para nos colocar dentro da aeronave. Ao entrar no maior avião de passageiros do mundo, minha sensação era de que a classe executiva era apertada! Só que não. É que o avião inteiro, na parte de cima, é só primeira classe e executiva, o que enganou meu cérebro. Tudo é imenso. Olhei pela janela e fiquei espantado com o tamanho da asa. A superfície alar do A380 é de impressionantes 845 m2. A asa é tão grande que a gente até perde um pouco da noção espacial durante o primeiro taxiamento.
O conforto da classe executiva da Emirates é incrível. Existe muito espaço para guardar livro, necessaire, laptop, sapato, celular e todas as bugigangas que a gente quer ter ao lado quando faz uma longa viagem. É, de fato, uma experiência diferente. No A380 da Emirates a classe executiva ocupa quase toda a parte superior da aeronave, mas os quatro toiletes ficam localizados na cauda do avião. Isso incomoda um pouco, pois os dois da frente são para a primeira classe. Os toaletes ficam logo depois do lounge, que tem um bar, um aparador com comidinhas e duas poltronas de quatro lugares com cintos de segurança. Pela primeira vez na vida, não precisei me contorcer dentro de um toalete, que é espaçoso, mas ainda assim o vão para colocar a cabeça perto da pia é como o de todos os outros aviões – só uma girafa conseguiria escovar os dentes sem molhar o chão, se tivesse mãos.
O voo da Emirates tem um horário complicado (parte à 01h15 da madrugada), então é melhor jantar antes de embarcar. Devido às experiências anteriores, eu estava preparado para entrar no avião e dormir, mas depois de duas horas de voo serviram o café da manhã. Uma comissária me acordou e eu disse que não queria comer, mas ela insistiu. Eu disse: “Mais tarde”. Ela retrucou: “Mais tarde não tem”. Fiquei com medo de passar fome num voo de 14 horas e acordei para comer. Foi um erro. De qualquer forma, tomei o café da manhã às 3 da manhã sobrevoando o Atlântico, no meridiano de Brasília. Depois que comi, tentei dormir de novo, mas a luz estava forte. Fui ao lounge e percebi que a maioria dos passageiros estava acordada, então perguntei a um comissário se não era possível reduzir as luzes da cabine. “Mais do que isso?”, ele perguntou. “Sim, está muito claro”, respondi. Ele verificou, foi lá no fundão da aeronave e apagou as luzes. Voltou dizendo que algum colega tinha esquecido de colocar um ambiente noturno.
Com as luzes reduzidas, o teto da aeronave fica cheio de pontinhos, como se fossem estrelas no firmamento. Às 4h24 da manhã, voando a 33 mil pés na velocidade de 925 km/h, eu já estava brigando com meu relógio biológico. Eram 10h24 em Dubai e 15h24 em Tóquio. Qual horário escolher? Difícil saber.
Com exceção das particularidades comuns a cada voo, a primeira perna dessa viagem de quatro etapas é exatamente igual a todas as outras. Um amigo que foi comissário da Varig havia me dito que “voar no A380 é a mesma coisa que voar em qualquer avião”. De certa forma, devo concordar com ele. No início a gente até fica um pouco apreensivo pelo tamanho da aeronave, mas lá dentro, tirante o fato de que tudo é exagerado, o voo é como qualquer um. Se é que se pode considerar comum um voo com um deck inteiro de classe executiva e champanhe Veuve Clicquot ou Moet&Chandon à vontade. Mas, como eu já havia feito essa viagem duas vezes com o Boeing 777, devo dizer que o avião tem as mesmas reações e procedimentos que todos os outros, mas o conforto é bem maior.
Em Dubai, a sala VIP da Emirates é gigantesca. A comida é boa, mas a ducha é o melhor – e fundamental para quem precisa enfrentar mais 10 horas de voo. O trecho entre Dubai e Narita acontece durante o dia (no Japão). Sai às 2h55 de Dubai e chega às 17h20 no horário japonês. Por isso, o ideal é não dormir nessa etapa, mas é quase impossível resistir ao sono, pois a primeira perna dá um nó em nosso relógio biológico. Para quem vai só até Dubai deve ser mais fácil, pois o voo chega às 21h15 e a diferença de fuso é de apenas seis horas. A maior diferença no trecho DXB/NRT é que o serviço de bordo inclui comida japonesa. Foi nessa perna que aproveitei para ver um documentário sobre a guerra entre a Ford e a Ferrari nas 24 Horas de Le Mans. E, claro, saborear a culinária japonesa. O mais difícil nesse trecho é fazer com que seu corpo aceite o horário de bordo, pois quando ele começa seu corpo está dizendo que é 9 da noite (Brasil), mas o horário correto é 3 da madrugada (Dubai) e o horário ideal para se adaptar é 6 da manhã (Japão).
Voos de volta: Narita, Dubai, Guarulhos
Fiz a primeira perna da viagem de volta (voo EK 319) no A380-800 matrícula A6-EUH. Com quase 8.000 km pela frente, o avião partiu de Narita com 15oC e pela primeira vez ocupei um lugar na parte central do avião, no assento 15D. Um detalhe sobre a configuração dos A380 da Emirates: nos voos ligando o Brasil, ele tem os bins para acomodar bagagens de mão nas laterais do avião; nos voos ligando o Japão, os bins ficam apenas na parte central. É meio estranho e menos cômodo. E o “céu estrelado” no teto do avião não é tão bonito. Mas essa configuração é mais nova. O A6-EUH tem número de série 220 e voou pela primeira vez em 9/5/2016.
Narita é um aeroporto belíssimo, um dos meus preferidos no mundo. É impecavelmente limpo, bonito, com lojas ótimas. E tem a melhor sala VIP de todas, com uma comida fabulosa. As delícias da culinária japonesa incluíam dois tipos de sushi, o melhor tempurá de peixe do mundo, mousse de camarão com ovas de peixe e sashimi. Por falar nos lounges, o de Guarulhos é melhor que o de Dubai na qualidade da comida, mas perde, claro, em tamanho. Em Narita, o voo da Emirates é operado em code-share com a JAL (Japan Air Lines). O aeroporto de Narita fica longe de Tóquio, mais ou menos como Viracopos em relação a São Paulo.
Decolamos com chuva leve às 17h30 locais, com previsão de pouco mais de 11 horas de voo. A 4.000 pés o “Uniform Hotel” fez uma curva para a direita, alcançou a velocidade de 483 km/h e logo estávamos a 5.000 pés. Depois do nível 040 a razão de subida do Airbus A380 é impressionante. Ele chegou a 8.000 pés em menos de 4 minutos. Passamos por uma camada de nuvens pouco antes de atingir 10.000 pés e percebi que o apoio de cabeça da poltrona também levanta, melhorando o conforto. Aliás, outro detalhe que deixa a viagem bem mais confortável é o colchonete branco que os comissários colocam sobre o assento. Pegamos bastante turbulência nesse trecho sobre o Mar da Japão e também sobrevoando a Coreia do Sul.. Curioso é que, apesar de mil e uma mordomias, o voo da Emirates não tem um simples protetor de ouvido – e faz falta para quem quer dormir sem os fones de ouvido da aeronave. Afinal, o A380 não é exatamente silencioso para quem viaja da metade do avião para trás, depois dos motores.
Outro pequeno pênalti foi que os comissários esqueceram de me servir pão no café da manhã; precisei pedir. Mas nem dá para culpá-los, pois atravessar o avião inteiro equilibrando as bandejas nas mãos, para servir mais de 70 passageiros apressadamente, não é uma tarefa fácil. Com certeza, deve ser menos cansativo para a tripulação trabalhar num avião menor, como o Boeing 777, que fazia essa rota antes do A380. Quanto ao entretenimento, é sempre muito bom e variado. Se na ida assisti ao clássico “Intriga Internacional”, de Alfred Hitchcock, com Cary Grant e Eva Marie-Saint, na volta preferi o também clássico “Doutor Jivago”, de David Lean, com Omar Sharif, Julie Christie e Geraldine Chaplin. Pousamos suavemente em Dubai às 4h20 da manhã no horário local, com tempo bom, sem vento.
Como aproveitei para fazer uma pausa de um dia para conhecer Abu Dhabi, um dos sete Emirados Árabes Unidos, foi possível usufruir de mais uma mordomia para quem viaja na executiva da Emirates. Apesar da longa distância, tive uma perua Mercedes-Benz Classe E exclusiva na porta do hotel na Yas Marina para me levar de volta até Dubai. Aí sim, entrando por um outro terminal, deu para sentir o impressionante tamanho do aeroporto local. O voo para o Brasil parte de um terminal mais velho e não tão bonito. A perna final dessa viagem (voo EK 261) foi feita no A380-800 matrícula A6-EOE. Esse avião tem o número de série 169 e voou pela primeira vez em 31/7/2014. Vale lembrar que a frota de A380 da Emirates é a maior do mundo, com uma centena de unidades em operação e mais 42 encomendados. Como em todos os voos, ao entrar no enorme Airbus, tocava “Starman”, de David Bowie, seguida de “Free As a Bird”, que os Beatles lançaram depois da morte de John Lennon. Em seu speech, o comandante disse que o voo de 12.230 km teria duração de 14h30min e que havia previsão de chuva leve na chegada em São Paulo. Também revelou que voaríamos entre 32.000 e 40.000 pés.
Novamente na janela, vi uma cena incrível quando o “Oscar Eco” terminava o taxiamento para tomar a cabeceira 30R: ao lado do nosso, havia mais dois A380 prontinhos para a decolagem. Então foi possível notar que o A380 não é tão grande em comprimento como demonstra em envergadura e nas dimensões da fuselagem. O Airbus correu com saúde na pista árabe e quando levantou o nariz, saindo do chão, uma camada de vento desenhou claramente dois caminhos pelas asas – um por cima, outro por baixo. Foi como se estivéssemos vendo um teste em túnel de vento. Quando atingiu apenas 1.300 pés, fez uma longa curva para a esquerda. Dubai então ficou do outro lado da aeronave e não pude observar sua beleza do alto, pois eu estava no assento 14K, do lado direito. A 10.000 pés, voando a 698 km/h, foram apagados os avisos de apertar o cinto.
O voo DBX/GRU parte às 9h00. Portanto, viaja-se o tempo todo de dia, no mesmo sentido da rotação da Terra. Isso parece tornar esse trecho interminável. Mesmo assim, consegui dormir na primeira parte do voo. Fui acordado às 14h30 (horário de Dubai) para o almoço pela comissária Kacy, uma das duas brasileiras que atendiam a executiva (a outra chama-se Renata). Fazer o que? Comer e engordar ajuda a passar o tempo. E a comida da Emirates é sempre boa! Lá fora, o céu estava claro, com poucas nuvens, sobre a África. Na latitude de Salvador, no meio do Atlântico, voando a 38.000 pés sem nenhum vento contra ou a favor, o A380 ia a 890 km/h, atingindo Mach 0.83. Algum tempo mais tarde, quando atingimos a latitude de Belo Horizonte, começou uma turbulência bem chata, com vento frontal de 63 km/h.
O mau tempo persistiu até a chegada, pois faltando 55 minutos para o horário previsto de pouso, o comandante mandou suspender o serviço de bordo e avisou que a turbulência “moderada” iria piorar. Mas a descida foi tranquila, com muitas áreas sem nuvens. Porém, o vento persistia: 72 km/h a 32.000 pés e 79 km/h a 20.000 pés, quando o Airbus fez uma curva à direita sobre Santos, preparando-se para entrar na área mais congestionada da Terminal São Paulo. Algumas manobras previsíveis depois, o majestoso A380 da Emirates tomou a rampa final de Guarulhos, paralelamente à Rodovia Ayrton Senna, e cruzou a cabeceira 09R com velocidade moderada, pousando suavemente na pista paulista e livrando-a rapidamente a pista. Pousar desse lado favoreceu o nosso taxiamento, pois o “Oscar Eco” alcançou rapidamente sua posição no Terminal 3 de Guarulhos. Às 18h02, os quatro motores EA foram desligados. Mais uma vez, a Emirates cumpria com extrema qualidade e segurança sua missão de unir as importantes cidades de Tóquio, Dubai e São Paulo – lugares fundamentais de três continentes.
Quanto à experiência de ir e voltar de São Paulo a Tóquio (um total de 48 horas no ar) a bordo do Airbus A380, é incontestável que a introdução desse avião nessa rota melhorou a impressão que temos da Emirates. O Boeing 777 usado antes dele também era excelente e a companhia árabe já tinha um alto conceito, mas o A380 sem dúvida tornou a viagem melhor e mais confortável. Só pudemos avaliar a classe executiva, mas a primeira é um exagero e a econômica, em relatos que ouvimos de passageiros, também é muito mais espaçosa. Que bom termos a Emirates operando no Brasil. Sem ela, milhares de brasileiros jamais poderiam experimentar o resultado dessa obra-prima da engenharia aeronáutica.
Sergio Quintanilha, colaborador do AIRWAY, é redator chefe da revista Motor Show, da Editora Três, e, entre outros projetos, lançou no Brasil a revista Avião Revue, que surgiu originalmente na Alemanha.
Diário de bordo: Voando no Bandeirante da FAB
Parabéns pelo artigo rico em detalhes!
Uma correção a ser feita. Tanto a GE quanto a Pratt & Whitney parceiras na Engine Alliance são estadunidense.
Adorei o artigo!!
Parabéns!
Deve ter sido uma viagem sensacional!
A Pratt & Whitney Canada que fabrica esses enormes motores junto com a GE é uma subsidiaria quase que independente da Pratt & Whitney americana pois tem seu próprio centro de pesquisa, desenvolvimento e projetos. Ambas, tanto a canadense como a americana pertencem a um conglomerado ainda maior, a United Technologies.
Recentemente eu voei de São Paulo a Osaka via Dubai pela Emirates no A380. O trecho GRU-DXB fui na econômica e no trecho DXB-GRU ganhei um upgrade para a executiva. O serviço realmente é fantástico (especialmente na executiva).