Como abordar um problema grave no jato comercial mais vendido da história com milhares de aviões voando todos os dias no mundo inteiro? Não é uma tarefa fácil para a Boeing, mas a empresa tem se complicado ainda mais ao negar a existência de erros de projeto no 737 MAX, versão mais recente do birreator. Após duas quedas fatais com características semelhantes (os aviões entraram num mergulho sem recuperação), a fabricante centra suas atenções em modificar o software que deveria ajudar os pilotos em casos em que o avião estivesse com risco de estolar ao ajudá-lo a “picar”, o movimento de abaixar seu nariz.
Conhecido pela sigla MCAS, o software tem um nome complicado, “sistema de aumento de características de manobra”, e surgiu primeiro no 737 NG. Tudo porque o 737, um projeto da década de 60, não previa receber os atuais turbofans, cuja alta razão de diluição vem justamente do grande diâmetro de seus fans. Há 50 anos, esses motores possuíam um diâmetro pequeno, de cerca de 1 metro apenas, mas agora motores como o Leap-1, da CFM, praticamente dobraram de tamanho. A solução encontrada pela Boeing foi avançar e elevar a posição dos motores a fim de comportá-los. Isso, no entanto, modificou ligeiramente as características de voo do jato.
Uma tendência a elevar o bico do avião passou a ocorrer e a fabricante optou por desenvolver um programa que ajudasse os pilotos nessas circunstâncias, o famigerado MCAS. Se no 737 NG ele funcionou a contento, no MAX sua atuação automática pode ter confundido os pilotos que estavam a bordo dos aviões que caíram. Sabe-se agora que a tripulação do avião da Lion Air lutou contra o sistema por 40 segundos antes que se chocasse com o oceano.
A Boeing tem repetido com frequência que o MCAS pode ser desligado com o polegar no manche caso os pilotos dispensem sua ajuda. O que soa estranho é que um sistema, cuja familiarização no treinamento seria tão simples que bastaria uma hora para que os tripulantes possam assimilá-lo, pode ter sido esquecido em ambos os acidentes.
Mesmo batendo na tecla de que o 737 MAX é um avião seguro, a fabricante americana está promovendo mudanças no MCAS a fim de permitir que as mais de três centenas de aviões hoje no chão possam voltar a voar. É como um “recall branco”, quando a indústria corrige um problema sem admiti-lo e não receber processos judiciais para tanto.
Segundo explicou para vários veículos de imprensa que estiveram na fábrica de Renton nesta semana, a Boeing alterou a forma como o MCAS funciona. Na nova versão do software, ele passará a interpretar os dados de dois sensores diferentes que medem o ângulo de ataque da aeronave. Se eles tiverem leitura cuja diferença seja maior que 5,5º o MCAS deixará de atuar e mesmo quando o fizer será menos intrusivo, com intervalos maiores a cada ação.
Questionada por que o MCAS dependia apenas de um sensor até então, a Boeing afirmou que a falha não era classificada como perigosa e que poderia ser mitigada adequadamente. Em outras palavras, a fabricante tem empurrado a culpa para as tripulações e seu treinamento. As modificações no software seriam então uma forma de contornar erros desses pilotos.
Silêncio incômodo
Problemas com novos aviões ou sistemas não são incomuns na aviação, embora tenham sido mitigados com o passar dos anos graças ao avanço dos testes de homologação e mesmo a providencial ajuda de programas de computador que simulam milhares de situações possíveis. Mas nem tudo é previsível, infelizmente. Cabe a qualquer fabricante, no entanto, monitorar um novo produto até que ele ganhe confiabilidade e isso parece ter sido um grave erro da Boeing.
Mesmo que as tripulações dos aviões acidentados possam ter contribuído para agravar a situação fato é que um jato como o 737 não poderia involuntariamente entrar num mergulho irrecuperável estando em condições perfeitas de voo. É uma brecha de segurança enorme e mais do que isso, ela assombrou milhares de voos nesses meses em que o jato continuou sendo operado mesmo com essa lacuna de segurança.
Mais grave do que isso é o fato de a Boeing ter mantido a frota de 737 MAX voando como se nada de grave pudesse ocorrer enquanto estudava formas de corrigir problemas no MCAS, o que a empresa chama de “aprimoramento”. Passaram-se nada menos que 132 dias entre os dois acidentes, um silêncio incômodo só quebrado pela morte de 157 pessoas. Ainda assim, a fabricante só concordou em proibir sua operação três dias depois após um clamor mundial.
A despeito de ter repetido dezenas de vezes a palavra “segurança” e ter externado uma preocupação extrema com seus clientes e passageiros, a Boeing parece mais preocupada em não macular a imagem do seu avião mais vendido e que vive uma disputa acirrada com o rival A320, um projeto mais novo e que adotou melhorias semelhantes ao 737 MAX sem que isso implicasse em mudanças mais profundas.
O 737 é e ainda será um marco na aviação comercial e certamente superará esse episódio afinal trata-se de uma aeronave extremamente eficiente e admirada pelos seus operadores. Mas caberia à Boeing ter sido mais transparente mesmo sob o risco de perder uma encomenda. Arranhar sua imagem pode ser um preço muito maior a pagar por isso.
Veja também: Boeing 737 MAX sofre primeira baixa em encomendas após acidentes
Infelizmente a cicatriz na imagem comercial do modelo já está feita. Provavelmente seu concorrente direto, a família Airbus Neo, deve aumentar as vendas. Vamos aguardar os próximos capítulos.
Opinião correta. Boeing não deveria ter tentado jogar em baixo do tapete os problemas do modelo. Tinha credibilidade suficiente para assumir o erro eventual. Só fez piorar a situação.