A recente decisão da Justiça americana, que considerou a venda de jatos CS Series para a Delta Airlines como dentro da lei, apesar dos protestos da Boeing e até do governo do país, não por acaso com o presidente Donald Trump defendendo o bordão “Primeiro a América”, jogou no ar o temor de que a união com a Embraer é a tábua da salvação para eles e para a empresa brasileira. Um dos argumentos usados na imprensa estrangeira é de que o avanço dos novos concorrentes acabará colocando os dois fabricantes num beco sem saída caso não cheguem a um acordo.
A história, no entanto, nos mostra que essa ameaça não se torna realidade na maior parte dos casos. A razão é simples: construir e vender aviões comerciais não é uma tarefa iminentemente técnica e sim uma série de fatores comerciais e econômicos, de longo relacionamento e sobretudo de confiança. Ou seja, não basta desenhar e construir o melhor dos aviões se a empresa não souber como convencer o mercado a comprá-lo.
Basta ver o caso dos russos, experientes construtores de aviões, mas que até hoje, quase três décadas após o fim da União Soviética, não conseguiram emplacar uma mísera aeronave comercial no mercado mundial. Os chineses, por sua vez, parecem uma ameaça mais real com sua força industrial e de um país em que basta apenas uma encomenda significativa de meia dúzia de companhias aéreas locais para justificar uma linha de montagem. Porém, daí até conquistar grandes clientes mundo afora já é outra história.
Até mesmo os japoneses da Mitsubishi e seu belo jato MRJ não têm futuro garantido sem uma longa carreira afortunada capaz de demolir barreiras de desconfiança entre as empresas aéreas. Afinal, transportar passageiros é uma tarefa delicada, de alto custo e margens apertadas. Em outras palavras, não dá para jogar todas as fichas numa aposta arriscada e hoje esses novos aviões podem ser classificados assim. Quem garante que não estamos vendo novos casos de fracassos na aviação?
Clientes esquecidos
Não é preciso ir muito longe para relembrar quantos aviões, incluindo alguns até famosos, ficaram pelo caminho nas últimas décadas. Em alguns casos, embora com bons produtos, empresas inteiras acabaram perecendo, como foi o caso da Fokker, mas são comuns as mudanças de rumos de certos fabricantes que simplesmente pularam fora do mercado deixando vários clientes sem alternativa senão pensar em migrar para outro concorrente.
Uma delas foi a Saab. A fabricante sueca, que vai fornecer o caça Gripen NG para a FAB, já foi um player duríssimo para a Embraer na década de 1980. Lançou pouco antes da empresa brasileira o Saab 340, um bimotor turbo-hélice de pouco mais de 30 lugares que lembrava muito o EMB-120 Brasilia. A disputa, na época, lembrava os embates com a Bombardier, mas os suecos optaram por ampliar o portfólio com uma versão alongada do turbo-hélice, batizada de Saab 2000. Em vez disso, a Embraer preferiu migrar para o jato com o EMB-145, mais tarde ERJ-145. A jogada deu certo e o concorrente ficou pelo caminho. Dos 460 exemplares construídos menos da metade continua voando (225) no caso do Saab 340 enquanto 33 Saab 2000 seguem em serviço de 63 entregues.
A Saab, aliás, não é um caso isolado nesse mercado de turbo-hélices regionais. Nomes como ATP, Jetstream (BAe), Dornier 328, Shorts 360 e Metroliner ficaram pelo caminho, além do próprio Brasilia. Alguns dirão que o mercado desse tipo de avião perdeu o sentido mas é só lembrar da carreira do modelo franco-italiano ATR. Contemporâneo da maioria desses aviões, o bimotor está em produção até hoje nas versões ATR 42 e ATR 72. Nada menos que 950 unidades voavam em 2017, segundo o censo da revista inglesa Flight International. Além dele, também o canadense Dash 8 continua sendo produzido com quase 900 aeronaves ainda em serviço.
Até mesmo gigantes como a Lockheed Martin acabaram derrotadas na arte de vender aviões comerciais. Mesmo com os tão admirados Constellation e TriStar, a gigante aeroespacial americana desistiu de competir com a Boeing nos anos 1980. Na Europa, os fabricantes locais cansaram de ver seus produtos não vingarem até que resolveram juntar forças na Airbus e hoje o resultado é completamente diferente dos tempos em que jatos como o Comet, One-Eleven, Trident, VC10, Mercure e VFW-Fokker 614 não vingaram no mercado.
Lição caseira
A própria Embraer já viveu esses extremos. Enquanto o pioneiro Bandeirante teve uma carreira de sucesso inesperada, o Brasilia prometia mais. Primeiro avião comercial pressurizado e projetado para o mercado regional, o turbo-hélice teve apenas 356 unidades produzidas incluindo aí as versões para a FAB. Hoje apenas 138 continuam a voar, segundo o site Airfleets, ou seja, 38% das aeronaves. O rival suíço Saab 340 teve mais clientes (459 aviões) metade dos quais segue em operação (238).
Com a família ERJ, no entanto, a empresa brasileira soube cultivar um relacionamento de confiança com as companhias aéreas a ponto de 68% das 1.214 aeronaves fabricadas seguirem em serviço. Reparem bem: são 240% a mais aviões vendidos, um sinal claro de que além de ser um avião eficiente, o jato ERJ-145 e seus irmãos mantêm a capacidade de gerar dividendos para suas operadoras.
Essa magnífica herança se refletiu na família E-Jet, com 1.442 aeronaves entregues, 1.352 das quais em operação (quase 94% da frota). É contra essa carteira de clientes que os novos concorrentes terão de brigar. No caso da Bombardier, outra gigante do mercado, a tarefa talvez seja mais fácil agora que tem a Airbus como sócia e um produto promissor como o CS Series. Mesmo assim, basta ver como o desenvolvimento desse novo avião custou caro em matéria de tempo e dinheiro para o fabricante canadense.
Já para a Embraer, a nova família E2 pode ser um divisor de águas. A fabricante brasileira optou por seguir a cartilha da Boeing em vez da Airbus ao aprimorar seu produto mais bem sucedido – o que os americanos já fizeram várias vezes com o 737. Por enquanto, as vendas estão abaixo do esperado, mas com a entrada em serviço do primeiro E190-E2 nos próximos meses, a cartada da Embraer pode se provar válida. Na visão dos empresários do transporte aéreo, nada é melhor do que um avião barato, confiável e de operação eficiente. É isso que Mitsubishi, COMAC, Irkut e Sukhoi ainda têm muito a provar no mercado mundial.
Veja também: Boeing e Embraer podem criar uma terceira empresa em comum
Saab 340, o maior rival do EMB-120 Brasilia: fabricante suíça desistiu do mercado regional (Cory-W-Watts)
SUECA
Prezado Ricardo,
“FABRICAR AVIÕES COMERCIAIS NÃO É PARA AMADORES”,
Excelente matéria, Parabéns!!!
Att. Flávio Doria
Corrigido! Obrigado, João. Deu uma “pane elétrica” na minha cabeça: “rival da Embraer”, Pilatus, Suíça, Suécia, Crossair (primeira cliente do Saab 340)…rs
O caso da Fokker também mereceria mais destaque…tanto suas aeronaves turbo-hélice, como o Fokker F27, como os jatos como o Fokker 100, tiveram várias unidades em serviço…
Boa tarde!
Excelea.
Deveriam existir maiores destaques para estes tipos de matérias do que os inúmeros lançamentos de modelos de celulares e outros assuntos sem relevância nenhuma.
Parabéns à todos e muito obrigado.
Belíssima análise. Como morador da cidade de São José dos Campos, estamos muito preocupados com o desenrolar dessa negociação. Foi muito bom ler a sua análise. Não precisamos ir muito longe mas esse raciocínio vale para indústria automobilística. Estamos cheios de exemplos tanto em automóveis como caminhões. Voltando a indústria aérea, o A380 foi um tiro no escuro. Por enquanto a meu ver a Fly Emirates é que mantém a produção, certo??