No dia 15 de dezembro, uma data importante na aviação passou um tanto quanto despercebida. Nesse dia, há 10 anos, decolava pela primeira vez o 787 Dreamliner, jato widebody que a Boeing desenvolveu com inovações que acabaram ditando os rumos do mercado desde então. Ironia do destino, a fabricante norte-americana parece não ter entendido a importância do passo que deu naquela época e hoje sofre justamente por ter se apequenado diante dos desafios da indústria aeroespacial.
A longa e dolorosa crise do 737 MAX demonstra de forma cristalina essa percepção. Ao lançar o 787 no início da década passada, a Boeing tentou pensar “fora da caixa”, imaginando um cenário diferente para a aviação comercial. Mas quando foi o momento de repetir esse mesmo raciocínio no segmento de jatos de um corredor, a empresa preferiu renegar os avanços obtidos pelo widebody e buscar uma solução paliativa ao seu avião mais popular no mundo. Hoje, ela colhe o amargo resultado dessa postura míope.
Mas poderia ter sido diferente. Num período em que a rival Airbus era gerida de forma atabalhoada na ânsia de fazer frente aos aviões americanos, a Boeing foi perspicaz em buscar uma revolução para o setor na forma do projeto Sonic Cruiser. De concepção futurista, o birreator trazia inovações em vários aspectos, entre eles o voo a uma velocidade próxima a do som, o que se refletiria em uma viagem até 20% mais veloz que os jatos subsônicos.
No entanto, o Sonic Cruiser surgiu num período que foi gravemente afetado pelos atentados de Setembro de 2001 e que tornou o transporte aéreo mais caro por conta do aumento dos preços dos derivados do petróleo. Em outras palavras, os clientes da Boeing buscavam aviões mais econômicos e não mais velozes, e a empresa cancelou o projeto no final de 2002. Um mês depois, no entanto, surgia o 7E7, uma releitura de um widebody birreator com as lições aprendidas com o Sonic Cruiser.
Nessa época, a Boeing teve a grande sacada de enxergar um mercado de aviação comercial diferente do que se prenunciava. Enquanto a Airbus atirava para todos os lados com uma linha de jatos de grande porte que incluía o bem sucedido A330, mas também os quadrirreatores A340 e A380, a concorrente americana chegou à conclusão que havia um nicho importante entre os pequenos narrowbodies que lotavam aeroportos e os gigantes A380, 777 e 747 que funcionavam bem apenas em rotas com demanda muito alta.
O 7E7 (cuja letra “E” sugeria eficiência e uma preocupação ecológica) respondia a esse anseio com uma aparência relativamente semelhante a dos jatos convencionais, mas com diversas soluções capazes de, no conjunto, proporcionarem um voo muito superior, tanto em termos econômicos, como de conforto e sustentabilidade. Já no final de 2003, o novo bimotor ganhava nome e sobrenome, 787 Dreamliner, após uma competição pública com mais de 500 mil votos.
O “avião dos sonhos” era uma realidade. Em vez de uma estrutura majoritariamente em alumínio ele trazia componentes em material composto que reduziam seu peso e consequentemente a necessidade de combustível. Com uma fuselagem mais leve, foi possível configurar um sistema de pressurização que simula altitudes mais baixas, trazendo mais conforto para os passageiros e tripulantes. A opção pelo composite também trouxe outra vantagem: como não havia risco de oxidação foi possível elevar a umidade na cabine, outro benefício para reduzir os efeitos do famoso jetlag. Não foi só. O projeto do 787 premiou seus ocupantes com janelas maiores, minimizando a sensação de claustrofobia para muitas pessoas.
Aerodinâmica avançada
Menos perceptível, as formas do jato da Boeing traziam avanços fundamentais. Com asas de desenho mais refinado assim como seus estabilizadores, o 787 prometia um voo suave e econômico. Mas foi a adição de turbofans mais eficientes que completou a equação que fez o jato ser 20% mais econômico que o 767. Segundo a Boeing, 8% do consumo menor vem justamente dos motores GEnx e Trent 1000 TEN escolhidos para equipar o modelo. De quebra, a fabricante decidiu trocar baterias comuns por um conjunto mais moderno, de íon de lítio, mesma solução vista em automóveis elétricos e smartphones.
O 787 significava mais do que apenas um jato moderno. A própria Boeing reviu a forma de fabricar suas aeronaves comerciais ao optar pela solução da sua rival Airbus. Em vez de uma linha de montagem convencional, o novo avião seria parcialmente fabricado em várias partes do mundo, com uma cadeia de fornecedores e parceiros imensa para os padrões da fabricante. Ou seja, o widebody tornou-se um projeto global que envolve a participação de empresas de países como Japão, Itália, Coréia do Sul, França, Suécia, Índia, Reino Unido e, claro, uma imensa lista de fornecedores dos EUA.
Para unir esses componentes, mais uma vez a Boeing se inspirou na Airbus ao construir os 747 Dreamlifter, versões com a fuselagem ampliada para levar seções inteiras do 787. Por fim, a Boeing quebrou uma tradição ao construir uma nova fábrica para o jato na Costa Leste do EUA, em Charleston, na Carolina do Norte.
Apresentação de uma casca de avião
Com um programa tão complexo e inovador, problemas começaram a surgir. A primeira cliente, a companhia aérea japonesa ANA, encomendou 50 aviões em 2004 e esperava recebê-los em 2008. E a Boeing pretendia tornar o desenvolvimento do 787 mais barato e veloz do que o do 777, mas na prática as coisas não saíram como planejado. O jato ficou mais pesado do que o previsto e a empresa demorou mais tempo do que se previa para organizar sua cadeia de produção. O primeiro protótipo só começou a ser montado em 2007 e cogitou-se reduzir o uso de materiais nobres como titânio para reduzir os custos.
Se a lista de clientes e encomendas crescia, os atrasos também, mas a Boeing quis manter o ar de normalidade no progresso do projeto e escolheu um dia simbólico para sua apresentação pública, 08 de julho de 2007 que em inglês pode ser escrito como 7-8-7. O evento, com toda a pompa a que tinha direito, fez o mundo conhecer o mais novo jato comercial da fabricante líder nesse segmento, porém, mais tarde se soube que o protótipo era apenas uma “casca oca”. Não havia cockpit, divisões e equipamentos instalados. Nada disso impediu que a Boeing prometesse o primeiro voo em agosto, um mês depois do “roll-out”.
Seguiram-se então várias mudanças no cronograma do projeto até que o 787 em sua versão -8 (estreando a mudança no padrão da empresa) voasse pela primeira vez em dezembro de 2009, quase 30 meses após sua apresentação oficial.
Preço pelo pioneirismo
Além da gestação demorada, o 787 teve um processo de certificação longo, que levou 18 meses até que em agosto de 2011, o FAA e a EASA (agência de aviação civil europeia) autorizaram sua entrada em serviço. Cliente lançadora do jato, a ANA estreou o 787 em outubro de 2011 após receber o primeiro exemplar um mês antes. E a recepção ao novo widebody foi a melhor possível: a companhia aérea japonesa divulgou na época que 90% dos passageiros que voaram nele ficaram positivamente surpresos com o voo. O consumo de combustível se mostrou ainda maior do que o previsto, chegando a 22% em alguns casos – sempre comparado ao 767.
Não demorou, no entanto, para que os primeiros problemas mais sérios surgissem. Quase um ano depois de entrar em serviço o jato teve seu primeiro aterramento por conta de falhas nos motores da General Electric. Outras situações foram reportadas nos anos seguintes envolvendo vazamentos de combustível, problemas com extintores e até defeitos de fabricação, mas o 787 acabou sendo marcado pelo episódio das baterias de íon de lítio.
Em janeiro de 2013, um voo da ANA foi invadido pelo cheiro de queimado oriundo da bateria, descobriu-se mais tarde. O problema se repetiu com outros aviões e o FAA acabou proibindo o 787 de voar até ser descoberta a causa dos incêndios, o que só ocorreu meses depois e fez com que o avião voltasse a operar apenas no final de abril. Recentemente, o Boeing voltou a ter um problema grave graças a defeitos nas pás dos rotores do motores Trent TEN que trincavam prematuramente. Por conta disso, vários 787 acabaram no solo e até hoje a situação está sendo contornada pela Rolls Royce, fabricante do turbofan.
Com um programa tão cheio de percalços, o 787 acabou custando muito à Boeing. Em 2015, estimava-se que o projeto teria consumido nada menos que US$ 32 bilhões, cerca de R$ 130 bilhões em valores atuais. Há até quem duvidou que a empresa pudesse recuperar seu investimento, mas desde então foram encomendados quase 1.500 unidades das três versões existentes, um claro argumento de que sim, o 787, foi um belo projeto.
Demora fatal
A despeito do custo e da demora, o 787 foi responsável por mudar os rumos da aviação comercial. Se até então havia quem acreditasse em aeronaves imensas ou com vários motores, hoje é consenso que os birreatores são a única configuração viável e que implementar soluções que reduzam o peso são obrigatórias, assim como adotar turbofans mais eficientes que, combinados com asas avançadas têm trazido reduções significativas no consumo de combustível dessas aeronaves.
Nem todas as lições aprendidas com o 787 acabaram sendo replicadas da mesma forma, é verdade. A Airbus, que logo percebeu o erro estratégico de apostar no gigante A380, se apressou em responder à Boeing com o A350, mas foram anos até que o jato tivesse seu projeto definido e como isso o primeiro voo acabou ocorrendo apenas em 2013, mas sem todo o avanço visto no rival.
Nessa época, a Boeing gozava de uma ampla vantagem em relação aos europeus. Era o momento de fazer uso desse aprendizado e seguir à frente e isso de fato quase ocorreu. Em 2006, ainda às vésperas do 787 ser revelado, a fabricante chegou a anunciar que pretendia desenvolver um “mini-787” para o lugar do 737, mas a decisão acabou sendo postergada até que a Airbus lançou em dezembro de 2010 o A320neo, uma revisão do seu narrowbody implementando vários avanços tecnológicos, justamente prenunciados pelo Dreamliner.
Sob pressão, os americanos passaram o ano seguinte tentando decidir qual rumo tomar: partir para um novo jato ou voltar a investir no velho 737. Como tem ocorrido neste ano com o A321XLR, a Airbus acumulou várias encomendas do A320neo, incluindo da American Airlines, um duro golpe para a Boeing. Em agosto de 2011, a fabricante optou pelo caminho mais curto e arriscado ao lançar o 737 MAX.
O resto da história todos sabem. Mas como teria sido se a Boeing tivesse conseguido lançar o 787 bem antes e resolvido aposentar o 737 logo em seguida e lançar um novo jato de corredor único? Difícil dizer, mas por mais imprevisível que fosse essa opção talvez o cenário para o futuro da fabricante americana fosse bem mais claro do que hoje.
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