No próximo dia 24 de outubro, uma terça-feira, serão completados 20 anos do último voo supersônico de passageiros. Naquele dia de 2003, o Concorde da British Airways de matrícula G-BOAG proveniente de Nova York (JFK) pousava às 16h05 no Aeroporto de Heathrow, em Londres, pela última vez, encerrando mais de 27 anos de serviços comerciais.
A desativação do Concorde significou um retrocesso nas ambições da aviação: voos regulares supersônicos. A evolução da aviação comercial após a Segunda Guerra Mundial foi notória, com motores à reação, pressurização e o aumento da capacidade das aeronaves proporcionando que a aviação fosse uma atividade comercial de fato. Vencida barreiras operacionais, a próxima fronteira a ser superada era o voo comercial supersônico.
No contexto da Guerra Fria, ingleses e franceses se uniram para competir contra os americanos (Boeing 2707 e Lockheed L-200) e soviéticos (Tupolev TU-144) pela primazia dos aviões supersônicos. Os ingleses tinham o projeto Bristol Type 223 e os franceses a ideia do Super Caravelle. Em 1962, os programas foram unificados e surgia o projeto Concorde sob a futura liderança das fabricantes Aerospatiale e BAC.
Surpreendentemente, coube ao Brasil a primeira manifestação pública de interesse pelo supersônico. Em outubro de 1961, a Panair do Brasil assinou Memorando de Entendimentos com a Sud Aviation para a compra de três Super Caravelles.
Apesar da intenção, os primeiros compradores foram anunciados em 03 de junho de 1963: as empresas nacionais dos dois países envolvidos, a Air France e a BOAC (que se tornaria a British Airways após a união com a BEA), e a estadunidense Pan American – esta última era um voto de confiança, visto que a empresa ditava os rumos da aviação mundial.
O Concorde foi protagonista de um dos mais conhecidos casos de espionagem industrial da Guerra Fria, quando agentes da KGB surrupiaram informações do projeto e levaram para União Soviética. Valia tudo pela supremacia da tecnologia aeronáutica e coube à versão soviética do Concorde, o Tupolev TU-144, realizar o primeiro voo de uma aeronave comercial supersônica, em 31 de dezembro de 1968.
O Concorde realizou o primeiro voo em 02 de março de 1969 em Toulouse, no sul da França, com o piloto-chefe da Sud Aviation, André Turcaut, participando do voo, junto com o primeiro-oficial Jacques Guinard e os engenheiros de voo Henri Perrier e Michel Rétif.
O prognóstico do avião parecia promissor, com 74 aeronaves reservadas até aquela data, provenientes de empresas líderes como Air France, BOAC, Japan Air Lines, Lufthansa, Qantas e TWA. O número chegaria a 78 aeronaves em 1972 com a adição da CAAC e da Iran Air.
Promoção do avião
Como parte da promoção de vendas, o Concorde F-WTSS realizou visita ao Brasil em setembro de 1971, com exibições no Rio de Janeiro e em Campinas, atraindo multidões para ver a última palavra em tecnologia aeronáutica. No fundo, a visita era para apresentá-lo à Aerolíneas Argentinas e a VARIG. A empresa gaúcha reconhecia a tecnologia e os avanços do Concorde, porém, declinou da compra pois “era cedo para analisar se seria um sucesso ou não” a operação.
Dos quatro programas supersônicos da época, o Concorde era o que estava em estágio mais avançado, enquanto o jato soviético enfrentava problemas técnicos e os americanos desistiam da corrida quando o Congresso dos EUA cortou o financimento do programa após queimar centenas de milhões de dólares.
Isso significava que Concorde seria o único modelo ocidental, entretanto, grupos ambientais iniciaram uma campanha que pregavam a proibição dos voos do Concorde, pelo impacto sonoro provocado pelo rompimento da barreira do som, o chamado “Sonic Boom” em inglês.
Em uma medida controversa, o congresso norte-americano proibiu que o Concorde sobrevoasse áreas povoadas em regime supersônico. Essa medida afetou a propaganda da Aerospatiale/BAC sobre as vantagens dos voos supersônicos do Concorde.
Ao contrário do senso comum, não foi apenas a crise de petróleo a responsável pelo fiasco do programa, mas questões econômicas. Conforme os custos do Concorde subiam, as tarifas que as empresas aéreas deveriam cobrar também teriam que subir e o início dos anos de 1970 foram particularmente difíceis para a principal empresa aérea do mundo, a Pan Am, que não conseguia encher seus reluzentes Boeing 747.
Fazendo as contas, os executivos da Pan Am viram que a aeronave não seria lucrativa nas principais rotas e temiam se endividar mais para comprar o Concorde.
Em 31 de janeiro de 1973, a Pan Am cancelou suas encomendas de supersônico europeu. Outras empresas aéreas já tinham cancelado o supersônico antes como a Air Canada e a United Airlines, mas a decisão de não comprar o avião pela Pan Am foi um golpe forte na perspectiva dos fabricantes.
O motivo é que a companhia aérea mais global do mundo na época era uma referência para sua rivais em termos de equipamento. Sem o Concorde na Pan Am, elas deixaram de ver utilidade em operar o supersônico. Além da Air France e BOAC, ficaram apenas a Air China, Air India, Iran Air e Qantas como futuras operadoras, que viriam cancelar mais tarde as encomendas ou deixariam expirar os protocolos de intenções.
As esperanças da Air France e da agora British Airways, sucessora da BOAC, eram operar o Concorde nos voos para a Costa Leste dos Estados Unidos por várias razões: o mercado transatlântico era o mais lucrativo, não havia restrições de alcance e por ocorrer na maior parte do trajeto sobre o oceano, não havia restrições sobre o boom supersônico.
O governo americano autorizou, em caráter provisório, as operações regulares do Concorde em Washington Dulles (IAD) e no John F. Kennedy (JFK), em Nova York. O aeroporto de Dulles acatou a decisão das autoridades federais, mas o Port Authority of New York and New Jersey, proprietário de JFK, negou as operações, alegando questões ambientais. Um dos panos de fundo era o protecionismo do país ao não ter um produto local para concorrer com o avião.
As operações regulares
Com aeronaves recebidas a partir de dezembro de 1975, Air France e British Airways precisavam de outros mercados para operar o supersônico. Para a Air France, a rota escolhida foi Paris (CDG)-Dakar-Rio de Janeiro (GIG) e a British Airways, o voo Londres (LHR)-Bahrain. Para os franceses, o Brasil era um dos países que mais cresciam no mundo e com laços econômicos fortes com a França. Já a British Airways imaginava Bahrain como escala dos voos para Cingapura.
Em 21 de janeiro de 1976, exatamente no mesmo horário, decolavam respectivamente de Paris e Londres os primeiros voos regulares do Concorde: AF805, operado pelo F-BVFA e com tripulação liderada por Pierre Chanoine e Pierre Dudal, e o BA300, operado pelo G-BOAA, liderados pelo comandante Norman Todd. A cerimônia em Paris foi feita no Satélite 5 e contou com embaixadores do Brasil, Inglaterra e Senegal, além do presidente francês Valéry Giscard d’Estaing.
No Brasil, o Concorde reduziu em 50% o tempo de voo, mesmo considerando a escala em Dakar. Era a vitrine da aviação internacional brasileira, e a frenesi dos voos supersônicos como a nova etapa da aviação mundial, levou as autoridades brasileiras a nomearem informalmente os projetos de Manaus e Galeão como “Aeroportos Supersônicos”.
Na França, o Concorde era um produto de um período chamado de Trente Glorieuse, época de intenso desenvolvimento econômico francês do pós-guerra. Junto com o novo Aeroporto Charles de Gaulle, o Concorde era a visão futurística tardia da França, como pode ver no mini-documentário Plus vite que le soleil (Mais rápido que o sol), com a trilha sonora elaborada pelo músico Vangelis.
Após Dakar/Rio de Janeiro e Bahrain, Caracas, na Venezuela, foi o próximo destino atendido pelo supersônico, em 09 de abril de 1976, com um voo semanal da Air France via Santa Maria, no Açores. Os voos para Washington começaram em 24 de maio do mesmo ano, três frequências semanais para cada empresa.
A Air France realizou voos charters para a Iran Air entre Paris, Ilhas Kish e Tehran como parte dos planos da empresa aérea iraniana em operar o avião. A tão desejada operação em Nova York foi autorizada em 1977, com as duas empresas inaugurando serviços no dia 22 de novembro.
Em 09 de dezembro de 1977, a British Airways estendeu a rota do Bahrain até Cingapura por meio de parceria com a Singapore Airlines. A aeronave G-BOAD chegou a receber a pintura da Singapore Airlines do lado esquerdo, mas os voos duraram apenas até o dia 13 do mesmo mês, por conta da Malásia proibir o sobrevoo da aeronave sobre o Estreito de Malaca. O serviço só seria restaurado em 24 de janeiro de 1979.
Em 20 de setembro de 1978, a Air France estendeu o voo de Washington até a Cidade do México (MEX), duas vezes por semana, com o Concorde voando subsônico sobre a Flórida.
Das operações inusitadas, o acordo das duas europeias com a Braniff International Airways foi o mais conhecido. A partir de dezembro de 1978, a Braniff operou o Concorde em voos subsônicos entre Washington e Dallas/Fort Worth, em uma das megalomanias do enérgico presidente da empresa, Harding Lawrence.
Por serem aeronaves de matrículas estrangeiras operando voos domésticos, a Braniff tinha que trocar as matrículas das aeronaves toda vez que entrava ou saía dos Estados Unidos e manter a documentação a bordo das aeronaves. Os voos operavam com menos de 20% de ocupação e foram cancelados em maio de 1980.
As operações da Air France para o Brasil e Venezuela foram canceladas em abril de 1982 e em outubro foi a vez dos voos para Washington e Cidade do México. A British Airways estendeu os voos de Washington até Miami em março de 1984. Ambas cidades foram canceladas em janeiro de 1991. No final, Nova York foi o único destino que tinha serviços comerciais por ambas as empresas e na alta estação a British Airways operava Londres-Bridgetown, Barbados, aos sábados, e voos para Toronto.
No Brasil, após o cancelamento das operações regulares, a presença do supersônico ocorreria apenas em voos charters para cidades turísticas como Foz do Iguaçu, Manaus, Recife e Rio de Janeiro, além da visita do voo presidente François Miterrand ao Brasil em 1985.
Phil Collins na ponte aérea Reino Unido-EUA durante o Live Aid
Voar no Concorde, seja como passageiro quanto tripulante, representava o jet set da aviação. Ligando as cidades mais influentes do mundo, era comum a presença de milionários e celebridades em que o tempo era o fator crucial e o avião passou a ter um vocabulário próprio entre seus frequentadores, como I’ll Concorde to New York tomorrow ou Are you Concorde from Paris? (Você está ‘concorde’ de Paris, transformando o nome do avião em verbo).
Para aumentar as receitas, as empresas aéreas realizavam voos charters inusitados, como viagens ao redor do mundo com o supersônico e a dupla comemoração de Ano Novo, com os passageiros celebrando em Paris ou Londres a virada do ano, então voando com a aeronave contra o fuso horário, e “voltando ao tempo”, a ponto de chegar a Nova York a tempo de ver a passagem do ano novamente.
Esta “viagem ao tempo” foi um dos ápices do Live Aid, evento que foi realizado na Inglaterra e nos Estados Unidos em 13 de julho de 1985, com objetivo de levantar fundos para países pobres da África. O cantor Phil Collins fez uma apresentação em Londres e de lá seguiu para Heathrow de helicóptero, tomando um Concorde até Nova York e concluindo a viagem com outro helicóptero até a Filadélfia, onde fez outro show como parte do famoso concerto.
Com o tempo, o frenesi do avião supersônico foi diminuindo até virar algo cotidiano nos voos entre Paris, Londres e Nova York. Porém, essa rotina acabaria em 25 de julho de 2000 quando o Concorde da Air France F-BTSC caiu após decolar do Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, rumo à Nova York com um charter de aposentados alemães que iriam participar de um cruzeiro.
Os tripulantes da cabine ouviram um forte estrondo durante a decolagem e a perda do motor logo após a V1 – velocidade em que o não pode mais abortar a decolagem. Sem saber que o tanque de combustível do lado esquerdo estava em chamas, a tripulação lutou para controlar o avião e até chegou a considerar pousar em Le Bourget, entretanto o pássaro supersônico perdeu sustentação e caiu em um hotel em Gonesse, vitimando todos os 109 ocupantes do avião e mais quatro pessoas em terra.
Toshihiko Sato, passageiro que estava a bordo de um 747 da Air France, tirou uma foto do Sierra Charlie decolando em chamas. A imagem estamparia a capa de diversos jornais, e na televisão, era exibido um vídeo do avião em voo, feito por um cinegrafista amador. São as duas únicas mídias que registraram o acidente.
Posteriormente, as investigações apontaram que o supersônico atingiu uma barra de titânio que caiu do DC-10-30 N13067 da Continental Airlines, que havia decolado minutos antes. Em alta velocidade, a barra atingiu os pneus ao ponto de gerar uma onda de choque que afetou o tanque número cinco e os circuitos elétricos, desencadeando o incêndio na aeronave.
Imediatamente, Air France e British Airways suspenderam as operações com o Concorde até serem realizadas modificações necessárias para melhorar a segurança. Em 07 de novembro de 2001, o avião voltou a operação comercial, mas o cenário não era favorável como antes. As cenas do Concorde em chamas e, principalmente, a queda do tráfego aéreo após o 11 de Setembro fizeram com que as operações do Concorde não tivessem o apelo de outros tempos e assim, em 10 de abril de 2003, as duas empresas anunciaram o encerramento das operações do supersônico.
Sir Richard Branson, dono da Virgin Atlantic, chegou a fazer uma oferta pública para comprar os aviões da British Airways “pelo mesmo preço que pagaram”, ou seja uma libra, valor simbólico pago ao governo britânico. Depois a oferta subiu para um milhão de libras por avião até chegar a 5 milhões de libras, mas a companhia aérea britânica recusou a oferta.
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A Air France fez o último voo comercial no dia 31 de maio de 2003, com o F-BTSD chegando em Paris (CDG) após decolar de Nova York. A British Airways foi um pouco mais além e encerrou as operações no dia 24 de outubro, quando o G-BOAG decolou de JFK para Londres (LHR). A aeronave ainda voltou aos EUA em 5 de novembro, para ser exposto no Boeing Field, em Seattle, na Costa Oeste do país.
O voo final do Concorde ocorreu em 26 de novembro de 2003 quando o jato G-BOAF deixou o Heathrow e pousou no Aeroporto Bristol-Filton, onde passou a ser exposto no Museu Aerospace Bristol.
Voos supersônicos de volta em breve?
Após o fim das operações do Concorde, diversos projetos tentam recriar os voos supersônicos, por meio de um avião menor para atender ao público executivo. O projeto mais conhecido é o Overture, da Boom Supersonic, com capacidade para até 80 passageiros e 7.000 km de alcance.
Apesar de ter encomendas da American Airlines, da United Airlines e compromisso de compra pela Japan Airlines, o projeto possui ceticismo por não ser realizado por empresas tradicionais do setor, refletido na decisão das principais empresas de motores de não participarem do projeto.
Ao final, o Concorde representou o último capítulo de uma série de avanços tecnológicos na aviação no pós-guerra. Se antes um voo Rio-Paris levava três escalas e 24 horas de duração em 1946, 30 anos depois era possível fazer o trajeto com uma escala e em 7 horas.
O perfil elegante do Concorde, que lembrava uma ave de rapina durante as operações de pouso e decolagens, ficará marcado como símbolo de um desejo ainda não realizado na aviação: o de voos supersônicos acessíveis para todos.