Os anos 60 foram de imensa transformação na aviação comercial. Se em 1960, os jatos ainda eram uma novidade no transporte aéreo, dominado por motores a hélice, dez anos depois já vivíamos a empolgação de ver aviões gigantes ou supersônicos prenunciando uma era sem igual nas viagens aéreas.
O ano de 1969 então foi de catarse na indústria aeronáutica com os primeiros voos do Boeing 747, o maior avião comercial já visto, e dos supersônicos Concorde e Tu-144 (este no final do ano anterior). Mas foi um projeto que poucos levaram a sério na época que moldou a aviação comercial nos 50 anos seguintes, o A300.
O primeiro widebody birreator do mundo teve seu lançamento oficial no dia 29 de maio de 1969 quando os governos francês e alemão assinaram o que seria a base para criar a Airbus, atualmente a maior fabricante de aviões comerciais do mundo.
Meio século atrás, no entanto, apostar em um avião de dois motores de grande porte soava como piada. Os motores turbofans da época ainda não gozavam de uma confiabilidade tão grande para permitir que esses aviões pudessem voar muito distantes de aeroportos alternativos. Era praxe que jatos de médio alcance tivessem ao menos três motores como o Boeing 727, o Trident ou o Tu-154.
A aviação já via os primeiros birreatores em ação, mas em rotas curtas em áreas mais densas, onde não faltavam pistas. Durante a década, aviões célebres como o DC-9 e o 737 surgiram mas sem dar pistas de seu futuro sucesso. O que dirá então de um avião gigante com dois motores? Parecia absurdo, mas foi ao apostar nessa fórmula que a Airbus abriu um duro caminho para se consolidar.
Pré-Airbus
Apesar das deficiências em relação aos motores, a ideia de um bimotor de grande capacidade mostrava grandes vantagens. Ao se retirar um ou dois motores era possível reduzir peso e ampliar a eficiência no consumo de combustível, embora esse não fosse um problema naquele tempo. Ainda.
Mas quem imaginou um jato birreator de corredor largo não foi a Airbus e sim algumas fabricantes europeias como British Aircraft Corporation (BAC) com o 2-11, a francesa Sud Aviation com o Galion e o projeto HBN 100, tocado na época pela inglesa Hawker Siddeley e as francesas Nord Aviation e Breguet.
Em comum, eles traziam soluções semelhantes como capacidade para mais de 200 passageiros, fuselagem mais larga e apenas dois motores. Foi o HBN 100, no entanto, que mais se encaixou no que seria no futuro o A300, o primeiro avião da Airbus.
União européia
O pós-guerra viu iniciativas importantes de fabricantes europeus como o de Havilland Comet, primeiro jato comercial do mundo, ou o Sud Aviation Caravelle, o elegante bimotor francês, mas é fato que os americanos simplesmente dominaram a aviação comercial, primeiro com a Douglas e Lockheed e depois com a Boeing.
Com um mercado interno sem igual e diversas fábricas, os EUA tomaram a dianteira no setor e massacraram projetos como o BAC One-Eleven, HS Trident, Vickers VC-10, o Caravelle e o Mercure, raro avião comercial da Dassault com proposta semelhante a do 737.
A leitura dos governos francês, alemão e britânico era de que qualquer iniciativa isolada não seria páreo para os americanos, por isso o caminho passava pela união de forças.
Foi dessa forma que o embrião da Airbus nasceu em 1967. Franceses e ingleses já estavam juntos no projeto do Concorde, mas já se sabia que o jato supersônico possuía um mercado mais limitado, e era preciso produtos de grande escala de produção para manter empregos na Europa.
Concorrente de trijatos
O programa A300 (“A” de Airbus e “300” da capacidade inicial) foi se consolidando inicialmente como um rival direto dos americanos McDonnell Douglas DC-10 e Lockheed L-1011 Tristar, mas com apenas dois motores contra três de ambos.
Para contar com potência semelhante a dos dois aviões , a Rolls Royce se comprometeu a desenvolver uma versão mais potente do turbofan RB211 batizada de RB207. Contudo, a empresa inglesa, que estava sem recursos na época, acabou decidindo focar apenas no primeiro motor e que seria padronizado no jato da Lockheed – um imenso fracasso comercial, por sinal.
Sem ter um motor adequado e com dúvidas sobre a demanda de um imenso jato como o A300 original (e que seria maior até que um Boeing 777-200), os “pais” da aeronave decidiram reduzir seu tamanho para levar 250 passageiros em distâncias de 1.200 milhas náuticas (2.220 km).
Foi esse avião que surgiu em Le Bourget há 50 anos, o A300B. E ele era uma imensa surpresa para a época. A cooperação entre franceses, alemães e ingleses havia sido quebrada com a saída dos últimos, mas apenas parcialmente. Se o governo do Reino Unido decidiu não investir no projeto, a Hawker Siddeley resolveu participar dele ficando responsável pelas asas, que contavam com um refinamento aerodinâmico sem igual no segmento.
Com a redução do seu tamanho, os projetistas tiveram uma sacada genial, desenhar o A300B de modo que ele pudesse aproveitar um motor turbofan da época como o JT9D (Pratt & Whitney), CF6-50 (GE) e RB211 (RR), ao contrário dos widebodies americanos que nasciam específicos para um motor até então.
Ao aproveitar motores já desenvolvidos, a Airbus economizou milhões que foram empregados para tornar o A300 um avião de ponta. Além de mais leve por conta dos motores, o birreator passou a incorporar materiais compostos em algumas partes como bordo de ataque das asas e da cauda, algo inédito para a época, mas que hoje é empregado em grande escala em aviões como o A350 e o 787.
O diâmetro da fuselagem, que era de 6,4 metros no A300 original, foi reduzido para 5,6 metros, porém, os projetistas da Airbus decidiram elevar o piso da cabine de passageiros para que fosse possível receber dois pallets LD3 lado a lado no porão.
Ao decidir qual turbofan utilizar, a Airbus optou por escolher o CF6-50A, de 49 mil libras de empuxo. A razão é que a GE teria a ajuda da francesa Snecma, numa parceria que mais tarde cresceria na forma da CFM.
Curiosamente, no entanto, o primeiro A300B se mostrou pequeno para o primeiro cliente da Airbus, a Air France, que pediu uma variante um pouco mais longa, a B2, com 270 assentos e que se tornou padrão até o surgimento do B4, com maior alcance.
Novos sócios
Quando o primeiro protótipo do A300 voou, em setembro de 1972, a Airbus já havia alterado sua sociedade várias vezes. Se na sua concepção, França e Inglaterra deveriam ter liderado o consórcio, seguidos da Alemanha, a saída dos ingleses colocou franceses e alemães como principais sócios, com 50% cada e representados pela Aerospatiale (nascida da junção da Sud Aviation e da Nord Aviation) e Deustche Airbus, joint venture entre a Messerschmitt-Bölkow-Blohm (MBB) com 65% e VFW-Fokker com 35% – a Hawker Siddeley, por sua vez, era apenas uma subcontratada no início.
Em 1971, a espanhola CASA entrou para o grupo com 4,2% de participação. Quando as principais fábricas britânicas se juntaram sob o chapéu da estatal British Aerospace em 1977, os ingleses voltaram a integrar a Airbus formalmente com 20% das ações. Hoje, no entanto, a Airbus é uma empresa que engloba não só a divisão comercial como também absorveu outras atividades e que assumiu a participação britânica.
O início (ruim) de vendas
Se no papel, a Airbus e seu avião pareciam a fórmula ideal mesmo após as crises do petróleo mudarem completamente o cenário da aviação comercial, convencer companhias aéreas a comprar o A300 foi uma tarefa árdua.
Desde o princípio, os dirigentes do consórcio tinham em mente que sem conquistar clientes nos EUA a empresa não teria futuro. Para isso, saíram numa turnê mundial em 1973 e que passou inclusive pelo Brasil, onde o widebody europeu visitou o Rio de Janeiro e participou da feira internacional de aviação em São José dos Campos – o A300 acabou comprado pela Varig-Cruzeiro e pela Vasp anos depois.
O jato passou ainda pelo México antes de seguir para os EUA onde foi apresentado às principais companhias aéreas americanas, mas sem um mísero avião vendido.
Até então, o A300 só havia conseguido vender seis unidade para a Air France e três para a Lufthansa, naturalmente candidatas a usá-lo por influência de seus países. O problema do avião, no entanto, estava no alcance pequeno, o que motivou a Airbus a criar a versão B4, graças a um tanque extra de combustível. Com autonomia elevada, o A300 foi encomendado pela Korean Air em 1974, pouco depois de entrar em serviço.
Mas mesmo capaz de consumir 20% menos combustível que um DC-10, as vendas do A300 não decolavam. Foi então que a Airbus partiu para um “corpo a corpo” com várias companhias aéreas, sobretudo da Ásia, onde o jato parecia ser melhor compreendido. Vieram pedidos da Indian Airlines e Thai Airways, além de encomendas da francesa Air Inter e da South African Airways, mas nada de um cliente nos EUA.
Para quebrar o tabu com os americanos, a Airbus contou com a ajuda de um ex-astronauta americano, Frank Borman, que participou das missões da Gemini VII e Apollo 8 e posteriormente assumiu o comando da Eastern Airlines, uma das maiores companhias aéreas dos EUA.
Borman já havia gostado do A300 em 1973 quando o conheceu na turnê, mas o negócio não evoluiu até o consórcio fazer uma oferta ousada, alugar quatro aviões por seis meses antes de decidir pela compra. O ex-astronauta acabou encomendando 23 jatos em 1978, tornando a Eastern Airlines a primeira cliente da Airbus no país.
Tecnologia de ponta
Na história de meio século da Airbus há, claro, momentos menos nobres como acusações de financiamentos estatais subsidiados, concorrência ilegal e métodos pouco ortodoxos para convencer clientes, algo corriqueiro nesse segmento e que atinge vez ou outra todos os fabricantes, mas afirmar que a empresa europeia só chegou ao que é hoje por isso é uma imensa injustiça.
Um dos aspectos mais admirados na Airbus é justamente o fato de ter buscado introduzir novidades tecnológicas que acabaram se tornando padrão na indústria.
Antes da Airbus, na aviação comercial não se falava em materiais compostos, fly-by-wire, um cockpit com instrumentos digitais, manche em estilo joytisck ou aviões de longo alcance com apenas dois tripulantes, para citar alguns dos avanços mais notáveis da empresa.
Mas foi ao bancar o conceito do birreator como solução mais eficiente para os jatos comerciais que a Airbus pavimentou seu sucesso no mercado. Desde que em 1977 o A300B4 recebeu o primeiro certificado ETOPS (Extended Twin Engine Operations ou operações estendidas com bimotores) os aviões de dois turbofans tornaram-se cada vez mais confiáveis para voar longos períodos sobre os oceanos, possibilitando novas rotas e tornando as passagens aéreas mais acessíveis.
In 1969, Airbus predicted the future of commercial aviation with twin engines
É verdade que apesar disso a própria Airbus teve seus momentos de descrença no futuro com dois motores. Ao lançar o A340 e sobretudo o A380, a fabricante europeia tentou seguir pelo caminho dos quadrirreatores justamente em um período em que eles começaram sua decadência no mercado.
Felizmente para ela, a correção de rota veio logo com o A350, um jato avançado criado para tentar anular parte da vantagem obtida pelo 787, em um raro momento em que a Boeing foi mais ousada que sua rival europeia nas últimas décadas.
Hoje parece natural ver um A321LR cruzar o Atlântico em voos de mais de 7.000 km de distância, mas dizer isso 50 anos atrás causaria risos ou pura incredulidade em qualquer roda de pilotos. Eis aí o grande legado da Airbus.
Veja também: Airbus atinge marca de 12 mil aviões entregues em 45 anos
Parabens pela excelente reportagem !!!
Muito legal a matéria.
A Airbus foi muito importante para os avanços tecnológicos hoje presentes na aviação, e, sem dúvidas, continua sendo muito importante porque a concorrência com a Boeing faz com que, cada vez mais, as duas gigantes da aviação busquem pelo pioneirismo aliado à segurança.