Quando a companhia aérea Gol entrou com processo de recuperação judicial em janeiro, um dos muitos documentos apresentados para a concordata foi a propriedade de aeronaves. Em um universo de 141 aeronaves, apenas duas pertence à empresa. Para muitos foi surpresa ver uma companhia aérea tão grande, mas com a posse de poucos aviões. Entretanto isto é uma prática comum nos últimos 40 anos, o leasing aeronáutico.
A aviação é uma das atividades econômicas mais complexas existentes. É um setor em que as normas de segurança são a base das operações e que possui diversas variáveis em combustível, funcionários e câmbio, além de legislações que mudam de país para país.
Uma das maiores questões econômicas da aviação é o uso intensivo de capital na compra de aviões, principalmente novos. Um Boeing 737 MAX 8 pode custar US$ 120 milhões, o Airbus A320neo, US$ 110 milhões e o Boeing 777-9 pode chegar a um valor de US$ 450 milhões.
Os aviões das empresas aéreas são de quem?
Mesmo considerando que estes valores são referenciais e as empresas consigam descontos entre 25% e 40%, estamos ainda falando de milhões de dólares.
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Imagiando que uma linha aérea compre 10 unidades do 737 MAX 8 com 25% de desconto, ela terá investido no mínimo US$ 900 milhões – ou R$ 4,6 bilhões, sem contar treinamento, manutenção, estoque de peças e os custos diários de operação. E o tempo entre encomendar e receber pode variar por anos.
Quando as empresas aéreas eram de propriedade estatal, o custo de aquisição era absorvido pelos governos ou então eram avalistas junto aos financiamentos. Não era raro também as empresas aéreas privadas terem apoio do estado para compra de aeronaves.
Em todas as alternativas, o dinheiro mobilizado para comprar era elevado e para que a sua operação amortizasse o investimento, o avião teria que voar na empresa por anos, ou então ser vendido por um valor abaixo do mercado, devido à depreciação.
Então por que não alugar as aeronaves? O valor pago no financiamento poderia ser usado para as prestações, há possiblidade de devolução quando o contrato expirar e, principalmente, não é preciso muito capital.
A primeira arrendadora, ou lessor como são conhecidas em inglês, a ser constituída foi a International Leasing and Finance Corporation – ILFC, fundada por Steve Udzar-Hazy, Leslie Gounda e Louis L. Gounda, com o primeiro contrato fechado com a Aeromexico, em 1973. O mercado de aluguel de aeronaves já existia antes, porém, eram mais comuns entre as empresas aéreas, não sendo considerado uma atividade econômica.
O mercado de leasing de aeronaves cresceu conforme a aviação ia se tornando mais desregulamentada, como a privatização de empresas aéreas estatais, o surgimento de concorrentes e o custo do capital, fazendo com que os lessors ganhassem mais protagonismo no setor.
Além da ILFC, destacaram como pioneiras a Guinness Peat Aviation (GPA) e GE Capital Aviation Services (GECAS). Até empresas aéreas tentavam aproveitar deste mercado como a Singapore Airlines com Singapore Aircraft Leasing Enterprise (SALE), Swissair com a Flightlease, Ansett Australia com Ansett Worldwide e a GPA, fundada com o apoio da Aer Lingus.
O fato é que o mercado de leasing tem se mostrado mais rentável que o de transporte aéreo, uma vez que a renda é obtida pelo arrendamento do ativo, sem a necessidade de montar toda a estrutura de empresa aérea. E entre os grandes lessors, a associação com grandes grupos financeiros e econômicos garantiam linhas de financiamento, juros menores e fiadores com bom histórico de crédito. Destaques eram a ILFC, ligada à AIG, e a GECAS com a GE.
Nas últimas décadas surgiram de novos players e a fusão de antigos. O primeiro movimento foi que as empresas aéreas passaram a se desfazer de seus braços de leasing, por valores consideráveis. Por exemplo, a venda da SALE em 2006 trouxe mais de US$ 965 milhões ao caixa da Singapore Airlines.
Hoje os principais lessors estão localizados nos EUA e na Irlanda – neste último há vantagens tributárias para o estabelecimento deste tipo de negócio. Todas elas estão ligadas à bancos ou fundos de investimentos, e é notável a presença de capital chinês (Avolon, BOC Aviation – ex-SALE, ICBC Financial Leasing) e japoneses (SMBC Aviation Capital). Os árabes ganharam mais proeminência com a DAE Capital e a ALAFCO e surgiram empresas de leasing específicas, como a Nordic Aviation Capital, especializada em aeronaves regionais.
Até mesmo as fabricantes de aeronaves possuem divisões de leasing. A Airbus com a Airbus Asset Management, a Embraer com a ECC Leasing e a Boeing com a Boeing Capital. Além de potencializar as vendas dos produtos da empresa, elas podem também ser usadas para barganhar contratos. Um dos casos mais inusitados foi quando a Boeing Capital recebeu A340-300 novos da Airbus pois era parte de um acordo que a Boeing ficaria com os A340-300 da Singapore Airlines em troca da encomenda de 43 777-200ER.
Um outro caso, mais local, foi quando a Boeing Capital arrendou por preço simbólico três MD-11 para a TAM enquanto não chegassem os 777-300ER encomendados.
As principais modalidades de leasing
Basicamente há dois tipos de leasing que as companhias aéreas utilizam: o operacional e o financeiro. No leasing operacional o avião é arrendado por um período determinado de tempo, como um contrato de aluguel. O leasing financeiro é como fosse uma compra parcelada e que no final do tempo das parcelas, o operador tem opção de exercer a compra ou não.
No Brasil, o leasing financeiro deve ser lançado no balanço patrimonial tanto como ativo quanto passivo, ou seja, passível de tributação. O leasing operacional não incorre da mesma tributação, além disso ele pode ser em prazo inferior ao leasing financeiro.
Tanto o leasing operacional quanto o financeiro podem ser classificados como dry leasing (aluguel seco numa tradução literal), quando apenas o avião é negociado, com a empresa providenciando outros serviços. Já o wet leasing é quando o contrato de locação inclui tripulantes, seguro e manutenção, além do próprio avião.
Um dos principais tipos de wet leasing é a ACMI – Aircraft, Crew, Maintanance and Insurance (aeronave, tripulação, manutenção e seguro). O wet leasing é usado para demandas pontuais, quando há problemas na frota ou para atender normas de segurança, como nos EUA.
Um estudo da consultoria CAPA mostra que 53% da frota mundial são de aeronaves alugadas e 23% das encomendas são realizadas pelas empresas de leasing. Esta defasagem se explica pelo fato das empresas aéreas venderem seus aviões para os lessors e arrendá-los depois, processo conhecido como sale leaseback.
O mesmo estudo aponta a Europa e a América Latina como as regiões com a maior porcentagem de aviões arrendados: 63% e 60%, enquanto na América do Norte e Oriente Médio são de 41% e 38%, respectivamente. Por tipo, as aeronaves de corredor único e jatos regionais são responsáveis por 58% da frota global, seguida por turboélices (45%) e aeronaves de dois corredores (43%).
Entre os tipos de empresas aéreas, as full services carrier (FSC) têm 49% da frota arrendada, abaixo das cargueiras (55%) e das charteiras e regionais (60%). Já as operadoras low cost têm em média 68% da frota arrendada, isso ocorre porque elas preferem ter menor custo de capital alocado nos aviões.
E no Brasil?
O mercado de leasing no Brasil começou em meados da década de 1980 e se consolidou na década seguinte. As principais empresas aéreas da época passaram a arrendar aeronaves por diversos motivos, entre as quais a rápida disponibilidade e a incapacidade de financiar aeronaves.
Entre as diversas aeronaves arrendadas e conhecidas pelos passageiros e público em geral, destacam os Boeing 747-400, 757-200 e os dois primeiros 777-200ER da VARIG, provenientes da ILFC. A Guiness Peat Aviation com acordos para os primeiros Fokker 100 da TAM e com a VASP, a Transbrasil com acordos com a Pegasus e a GECAS.
Nem sempre as relações das arrendatárias com seus clientes eram boas. A GPA declarou em juízo que sua bancarrota foi em parte pelos calotes feitos pela VASP; a ILFC arrestou em 31 de janeiro de 2003 o 777-200ER PP-VRB da VARIG em Paris, minutos antes de decolar, devido à falta de pagamento. Posteriormente, a mesma ILFC ameaçou arrestar 11 aeronaves de longo percurso da empresa gaúcha, um movimento que muitos acreditam que levaram a VARIG a acelerar a entrada em concordata.
A GECAS teve embates com a Transbrasil em relação ao Boeing 737-400 PT-TEO que derrapou e caiu em uma vala em Porto Alegre em 27 de fevereiro de 2000. A arrendatária queria receber o prêmio do seguro, enquanto a empresa de Omar Fontana desejava recuperar a aeronave, pois a baixa dela afetaria sua credibilidade com outras seguradoras. A mesma GECAS arrestaria o 767-200ER PP-VNN da VARIG em Miami em 06 de março de 2003.
Apesar de tudo, o Brasil continua como um dos mercados mais promissores para os lessors, o que pode ser constatado pela composição da frota das principais companhias aéreas. Em fevereiro de 2024, das 160 aeronaves da Azul, 158 eram arrendadas, sendo proprietária de apenas duas aeronaves, assim como a Gol. No balanço patrimonial de 2022, a LATAM tinha cerca de 38% de suas aeronaves como leasing operacional, com o número de aeronaves arrendadas podendo ser maior, por serem leasing financeiro, incorporada ao balanço do grupo.
Assim como em outros lugares, no Brasil é comum ter lessors com negócios entre empresas aéreas concorrentes. GECAS, Avolon, SMBC Capital, BOC Aviation tem acordos com as três principais empresas aéreas, assim como lessors de menor porte, como Orix Leasing, Sky Leasing, Nordic Aviation Capital. Na LATAM, dos dez Boeing 777-300ER, oito são da AirCastle, enquanto o MUJ é da Avolon e o MUI da BBAM.
A Yamasa Leasing é proprietária do único 787-9 com prefixo brasileiro, PS-LAA. E a Avolon é proprietária da maior parte dos Airbus A330-900 NEO da Azul. E a própria Azul tem uma aeronave em leasing com batismo peculiar, o PR-AUM “China e Brasil unidos”, possivelmente devido a proprietária do avião, a chinesa ICBC.