O fim dos aviões quadrimotores de passageiros

Aeronaves comerciais de longo alcance dominaram os voos internacionais desde a década de 1940, mas seu futuro está cada vez mais incerto
Airbus A380 da Emirates: até a maior operadora do modelo abriu mão de quadrimotores (Adrian Pingstone)
Airbus A380 da Emirates: até a maior operadora do modelo abriu mão de quadrimotores (Divulgação)
Airbus A380 da Emirates: até a maior operadora do modelo abriu mão de quadrimotores (Divulgação)

A notícia surgiu discretamente entre o Natal e o Ano Novo: a companhia Emirates decidiu postergar a entrega de seis jatos A380 de 2017 para 2018 e outros seis para 2019. Pode parecer corriqueiro, afinal é preciso se adaptar à volatilidade do mercado, porém, estamos falando da maior operadora do gigante da Airbus, avião com o qual a fabricante europeia imaginava dominar os céus do mundo.

É mais um golpe no futuro do único jato com dois andares inteiros de cabine e com maior capacidade de passageiros da história. No entanto, trata-se de uma tendência que deve, senão eliminar, praticamente reduzir a presença dos quadrirreatores nos voos internacionais. A principal razão está na eficiência operacional: mais motores significam maior consumo de combustível e isso é assunto delicado na aviação desde a crise do petróleo em 1973.

No caso específico do A380 adicione-se o fato dele levar muitos passageiros e só ser viável em rotas com grande demanda. É a mesma dificuldade do concorrente Boeing 747, outro que patina nas encomendas e na preferência das companhias aéreas.

ETOPS

É uma mudança drástica nos conceitos antigos da aviação já que o uso de múltiplos motores era uma condição básica em qualquer avião que precisasse cruzar algum oceano. Como a confiabilidade não era tão grande quanto hoje e a potência dos propulsores, um tanto limitada, era natural projetar uma aeronave com ao menos três motores. Foi assim até o advento do ETOPS na década de 1950 nos Estados Unidos. A FAA, equivalente à ANAC no Brasil, passou a exigir que aviões bimotores não voassem a mais de 60 minutos de um aeroporto alternativo em caso de pane – em outras palavras, a distância que eles conseguiriam percorrer com apenas um motor. Daí a sigla ETOPS: “Extended Twin Engine Operations”, operações estendidas com dois motores, numa tradução livre.

Com o advento dos jatos comerciais no final dos anos 1950, esses 60 minutos se traduziram numa distância maior, uma vez que a velocidade média era bem superior a dos aviões a hélice. Porém, o cenário dos voos internacionais só mudaria anos mais tarde, com o lançamento dos primeiros widebodies bimotores (Airbus A300 e Boeing 767). Esses jatos com corredores largos eram pouco menores que os principais modelos existentes, como os trirreatores McDonnell Douglas DC-10 e Lockheed L-1011 TriStar, além do famoso Boeing 747, porém, ainda não rivalizavam em alcance total.

Não demorou para que versões avançadas pudessem voar por distâncias transatlânticas. Já em 1976, a Airbus conseguiu uma autorização especial da OACI (Organização Internacional de Aviação Civil) para voar em regiões com ETOPS de 90 minutos com o A300. Mas a primeira companhia a voar com ETOPS superior a 60 minutos de forma oficial foi a americana TWA, que colocou seus 767 voando entre St. Louis, no estado do Missouri, e Frankfurt, na Alemanha, em maio de 1985. Era o começo do fim para os trirreatores e quadrirreatores.

Boeing 767 da TWA: companhia americana operou o primeiro voo ETOPS com 180 minutos (Aero Ícarus)

Graças à confiabilidade desses novos aviões logo a ICAO e FAA autorizaram a ampliação do ETOPS para 120 minutos de voo. Ou seja, um jato como o 767 ou o A310, versão menor e com maior alcance do A300, poderia ficar a duas horas de um aeroporto alternativo voando apenas com um motor.

Em 1988, o ETOPS chegou a 180 minutos e colocou os birreatores em condições de operação semelhante ao de jatos com três ou quatro motores. Na prática, 95% das rotas usadas no final da década de 1980 passaram a ser autorizadas para jatos com dois motores. Com o a chegada ao mercado de aeronaves bimotores com autonomia ainda maior, como o Boeing 777 e o Airbus A330, o cenário ficou amplamente favorável a eles. Modelos como o Boeing MD-11, uma versão avançada do trirreator DC-10, simplesmente perderam o sentido, enquanto alguns quadrirreatores resistiram por pouco tempo, como o Airbus A340 e o próprio Boeing 747-400. Hoje esses jatos estão em sua maioria alocados em voos cargueiros, onde o aproveitamento é maior que transportando passageiros.

A realidade atual já vê os limites ETOPS chegando a incríveis 370 minutos (seis horas e 10 minutos) no caso do Airbus A350XWB, o que significa voar para qualquer parte do globo sem restrições com apenas dois motores.

Mais motores, mais custos

O domínio dos aviões com dois motores foi possível por duas razões principais. Além da já citada confiabilidade, está o avanço na potência dos novos motores. Cada vez maiores, eles permitiram que jatos de grande porte como o Boeing 777-300 e o Airbus A350-1000 pudessem voar com apenas dois turbofans. Além disso, são bem mais econômicos que os motores menores usados pelos quadrirreatores.

Motores turbofans CF6-50 e GEnX: potência superior com mais confiabilidade e economia permitiu os voos transoceânicos dos birreatores (Divulgação)

Por conta das novas tecnologias e materiais, mas também ao seu desenho, eles puderam oferecer mais potência com menos consumo de combustível. A grande sacada dos fabricantes de motores foi descobrir que se parte do ar que entra nas turbinas fosse direcionado para a superfície externa do motor e se encontrasse no final com a parte quente resultaria em mais energia sem aumento de consumo – como se fossem, a grosso modo, dois motores, um ‘frio’ e outro ‘quente’, os chamados turbofans.

A proporção com que esse ar é dividido é chamado de bypass ou razão de derivação. Nos primeiros turbofans, ela era baixa. Um dos motores de maior sucesso da aviação comercial, o CF6, da General Electric, possui uma razão de 4,4 nas suas primeiras versões (para cada parte que vai para a câmara de combustão, 4,4 passam por fora). Seu mais moderno turbofan atual, o GEnX, possui uma razão de 9,1, ou seja, mais que o dobro. São motores com diâmetros imensos: para se ter uma ideia, o GEnX possui 3,53 metros de diâmetro no fan, o suficiente para “engolir” um carro.

Graças a essa nova geração de motores foi possível construir jatos birreatores imensos e com alcance impressionante. Modelos como o Boeing 787 voam por mais de 14 mil km e há planos de versões de ultra longo alcance capazes de permanecer no ar por 19 horas sem escala a partir de 2020.

Hoje os aviões com maior alcance ainda são os quadrirreatores mas por um custo mais alto. Jatos como o Boeing 747-8 e o Airbus A380 têm ainda contra si o fato de só serem viáveis em rotas com grande demanda, algo que pode ser suprido com mais frequências realizadas por aeronaves menores.

De Havilland Comet: primeiro jato comercial da história manteve a tradição dos quatro motores introduzida pelos aviões a hélice (Divulgação)

Sem interessados

O reflexo desse movimento já pode ser visto nas encomendas das companhias aéreas: quase não há mais pedidos para quadrirreatores. Um caso exemplar envolve o Airbus A340. O quadrijato surgiu ao mesmo tempo que sua versão birreator, o A330. A Airbus propôs no início da década de 1990 uma versão curta com maior alcance (-200) e outra com mais capacidade e autonomia menor (-300) de ambos os modelos.

Enquanto o A340 teve apenas 246 unidades vendidas, o A330 somou nada menos que 1.430 aviões encomendados apenas das versões -200 e -300 (sem contar o cargueiro -200F e novas versões ainda em desenvolvimento). O fabricante europeu ainda buscou explorar o quadrirreator anos depois com novas e maiores versões, o A340-500 e A340-600, tentando concorrer com o Boeing 777 em capacidade e alcance, mas novamente o resultado comercial foi pífio: somente 131 aparelhos foram produzidos.

Outro sinal que reforça a impressão que o tempo dos quadrirreatores já foi é o fato de 34% dos A340 entregues da primeira geração já estarem encostados. Enquanto isso, apenas 30 unidades do A330 original não voam mais e o modelo ainda é produzido – o A340 saiu de linha em 2011.

O icônico 747 também é outro ameaçado pela onipresença dos birreatores. No ano passado, a Boeing admitiu que pode encerrar a produção do jato, há 50 anos sendo fabricado sem interrupção. Mesmo sua versão mais recente, 747-8, que incorporou vários avanços técnicos do 787, teve 138 aviões vendidos, 88 deles da versão cargueira. No ano passado, o Jumbo passaria em branco não fosse uma encomenda de 14 unidades do 747-8F pela cargueira UPS (a versão de passageiros não é vendida desde 2013).

Boeing 787 e Airbus A350: birreatores avançados são hoje os preferidos das companhias aéreas (Oliver Holzbaker/Brian Bukowski)

Diante desse cenário, o futuro do A380 parece ainda mais sombrio. Com apenas 319 encomendas, o maior avião da Airbus nem de perto cumpriu a expectativa que se tinha dele. Além de ser um quadrirreator, o jato também carrega consigo a alta capacidade, que limita ainda mais o seu uso. O caso do Brasil ilustra essa situação. Cotado para voar para nosso país há anos, apenas em março de 2017 o A380, enfim, terá uma frequência regular entre Dubai e São Paulo pela Emirates.

Aliás, se não fosse pela companhia aérea dos Emirados Árabes talvez o A380 já estivesse fora de produção. Por isso o adiamento das entregas para a empresa tenha surgido como um sinal de alerta para a Airbus.

Embora a empresa aposte que algumas rotas já tenham ‘slots’ preenchidos a ponto de necessitarem de aviões maiores para dar conta da demanda, a realidade é que as novas gerações de jatos como o Boeing 787 e Airbus A350 oferecem uma experiência mais agradável para os passageiros, são mais baratos de operar para as companhias e têm tamanhos mais adequados para a maior parte dos destinos mundiais.

A380neo fora de questão

O que poderia ser uma possível salvação para o ‘superjumbo’ europeu parece ter ido para o “vinagre”. A Airbus cogitou uma nova versão aprimorada do jato, o A380neo. Ele teria melhorias na parte aerodinâmica, materiais e custos mais baixos de operação (mas certamente ainda um quadrirreator). A própria Emirates era a mais interessada no novo avião, como declarou em várias oportunidades, mas a Airbus parece ter descartado essa possibilidade.

Se assim for, os céus deixarão de ser o caminho dos aviões de quatro motores nas próximas décadas, afinal, na aviação comercial agora menos parece ser mais.

Veja mais: Maior avião brasileiro, Embraer E195 está quase pronto

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  1. Triste fim para estes gigantes, mas previsível. Ficarão na nossa memória pelo desenho arrojado, pelo enorme tamanho, pela capacidade. Que venham enormes bimotores!

  2. para não perder essa maquina ,poderiam adaptar ele como avião de carga ,seria interessante ,levaria cargas de pequeno tamanho no primeiro andar e de grande tamanho em baixo ,não se pode perder uma máquina dessa ,é uma das maravilhas da engenharia .

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