A maioria dos pilotos faz o que eles fazem porque amam voar. Seja por hobby ou a trabalho, entusiastas e profissionais encaram rotinas de longos voos parando apenas para abastecer ou quando as condições climáticas são muito ruins. Apesar de toda paixão pelo voo, depois de alguns dias voando todo piloto fica cansado.
Se você acha que pode ser difícil, imagine então passar mais de dois meses a bordo de um simples Cessna 172 Skyhawk voando 24 horas por dia e sem pousar para reabastecer. Foi exatamente isso que os pilotos americanos Bob Timm e John Cook fizeram em 1958 nos céus da Califórnia e Nevada, nos Estados Unidos, e estabeleceram um recorde de resistência que até hoje não foi superado. A aventura de 64 dias nos céus foi patrocinada pelo Hacienda Resort Hotel and Casino, um antigo hotel e cassino de Las Vegas.
Bob Timm trabalhava no hotel consertando máquinas de caça níquel e nas folgas aproveitava seu tempo livre para voar com pequenos aviões. Apaixonado pela aviação, Timm alimentava o sonho de estabelecer o recorde mundial de voo mais longo. Argumentando que uma ação desse tipo traria muita publicidade ao hotel, Bob conseguiu convencer seus chefes a patrocinar o voo.
O Hacienda Hotel cedeu US$ 100.000 para financiar o projeto. O dinheiro foi usado para comprar um Cessna 172 Skyhawk relativamente novo e modificá-lo. A aeronave, batizada com o nome do hotel, ganhou um motor modificado para permanecer funcionando por longos períodos e um tanque de combustível extra na parte inferior da fuselagem.
O interior do avião também foi completamente modificado e transformado em uma espécie de casa com asas para encarar o “voo sem fim”. O banco do segundo piloto no lado direito da cabine foi retirado e seu lugar foi ocupado por um colchão. O “banheiro” era um pequeno espaço atrás da posição do comandante, com uma pia. Já a porta no lado direito do avião foi retirada e substituída por uma porta sanfonada, necessária para ajudar na parte mais difícil da missão: o reabastecimento.
Duas vezes por dia, o Hacienda Hotel descia até um ponto de encontro por uma estrada no deserto e recebia combustível de um caminhão em alta velocidade. Durante a manobra, os pilotos içavam uma mangueira e bombeavam 95 galões (359 litros) para o tanque com uma bomba elétrica, além de também receberem comida, água e outros suprimentos.
Começa a aventura
Antes de bater o recorde, Timm realizou três tentativas para o voo mais longo com o Hacienda Hotel. Nessas primeiras oportunidades, a melhor marca do Cessna 172 foi de “apenas” 17 dias. Os dois primeiros voos foram interrompidos por problemas no motor e também porque Bob não teve uma boa relação com seu primeiro co-piloto.
Na terceira tentativa, John Cook, então piloto comercial da TWA, assumiu como co-piloto do Cessna e partiu para a aventura histórica. O primeiro voo da nova dupla em busca do recorde, porém, precisou ser interrompido por dois motivos: mais um problema no motor e um teste nuclear no deserto próximo a Las Vegas. Os pilotos desavisados voaram perto de uma área onde havia ocorrido uma explosão atômica, atividade que era muito comum nos EUA nessa região durante os anos 1950.
Irv Kuenzi foi o mecânico responsável por modificar o Skyhawk para voo, mas não concordava com as modificações propostas por Timm. O piloto pediu a Kuenzi para instalar um sistema de injeção de etanol no motor para “limpar” o carbono que poderia ficar acumulado na câmara de combustão.
A equipe tinha o apoio da fabricante de motores Continental Motors Corporation (CMC), que cedeu o motor modificado para o voo. Para a quarta tentativa, Kuenzi pediu um novo motor “especial” com o sistema de injeção de etanol alterado para derramar o combustível para fora do avião com segurança e de uma forma que Timm não pudesse ver nos testes… A CMC já indicava que o motor original usado no Cessna 172 podia suportar longos ciclos.
Enquanto a equipe de Timm e Cook preparava o avião para o quarto voo, Jim Heth e Bill Bukhart, outros dois pilotos americanos que buscavam o voo mais longo da história, completaram a marca de 50 dias ou 1.200 horas voando sem parar com um Cessna 172 apelidado como The Old Scotchman.
Dispostos a superar a marca de Helt e Bukhart, Timm e Cook decolaram com o Cessna 172 Hacienda Hotel no final de 1958 e voltaram a pousar somente no ano seguinte. A viagem rumo ao recorde começou no dia 4 de dezembro e terminou somente dia 7 de fevereiro.
64 dias no Cessna
Passar mais de dois meses voando a bordo de um pequeno Cessna foi um feito notável para a aviação e também algo sobre-humano. Os pilotos tomavam banho usando esponjas e alternavam o comando da aeronave a cada quatro horas. Mas era muito difícil dormir de dia. O barulho do motor, a vibração constante e o calor na cabine causavam uma imensa fadiga física e mental nos aviadores. A parte de como faziam outras necessidades e quais eram seus destinos nunca foram explicados pela dupla…
Ainda longe de alcançar a marca de 50 dias de Helt e Bukhart, surgiram os primeiros problemas. No 36° dia, Cook cochilou no meio da madrugada por mais de uma hora enquanto comandava a aeronave até Timm acordar e alertar seu parceiro. O Cessna, por sorte, contava com um sistema de piloto-automático (somente para o controle de movimento lateral da aeronave).
Três dias após o susto, um novo incidente. Uma falha elétrica no avião causou a inutilização de alguns sistemas da aeronave, entre eles a bomba usada para bombear combustível nos voos rasantes de reabastecimento. A partir desse dia, a transferência passou a ser executada com um sistema manual acionado pelo co-piloto. Ao todo, o Hacienda Hotel, com sistema de bombeamento elétrico e manual, realizou mais de 120 vezes esse processo durante a jornada do recorde.
A falha elétrica também impedia que os pilotos ligassem o aquecedor da cabine durante as noites frias voando pelo deserto. Para não congelarem nos voos noturnos, Timm e Cook voavam com agasalhos pesados e enrolados em cobertores.
Os pilotos passaram o Natal no avião, ocasião que Timm deu uma de papai-noel e lançou doces com paraquedas para seus dois filhos durante umas das passagens de reabastecimento. A tripulação também estava sempre bem alimentada: todos os dias o avião recebia refeições preparadas na cozinha do Hacienda Hotel.
Enquanto o voo era realizado, o hotel em Las Vegas mantinha atualizado um placar com a contagem de horas e dias que viagem já havia durado.
No dia 23 de janeiro de 1959, o Cessna de Timm e Cook finalmente alcançou a marca de 50 dias do recorde de voo mais longo em vigor e seguiu no ar esmagando a marca por mais algum tempo.
Nos últimos dias do voo, o motor do Cessna, ligado a mais de 50 dias, começou a mostrar sinais de desgaste e foi perdendo potência. No dia 7 de fevereiro de 1959, os pilotos decidiram pousar o pequeno avião no aeroporto de McCarran, em Las Vegas, de onde haviam decolado no ano anterior e entraram para a história. Ao todo, o monomotor voou por 64 dias, 22 horas, 19 minutos e 5 segundos, um recorde impressionante que dificilmente deve ser superado.
Nos mais de dois meses que permaneceu voando, o Hacienda hotel percorreu cerca de 240.000 km, o equivalente a quase seis voltas ao redor da Terra.
Relíquia de Las Vegas
O Cessna 172 permaneceu exposto no Hecienda Hotel por mais dois anos após o voo histórico até que os recordes de vos de resistência começaram a sair de moda, especialmente por não haver mais interessados dispostos a superar a incrível marca de Timm e Cook. Desta forma, o avião acabou vendido para um comprador no Canadá.
Bob Timm morreu em 1978 e John Cook faleceu em 1995, a tempo de rever a aeronave. O modelo foi encontrado por um dos filhos de Timm abandonada em uma fazenda em Carriot River, no Canadá, e levada de volta para Las Vegas. O lendário Hacienda Hotel foi restaurado de acordo com a configuração do voo histórico e hoje está exposto no Aeroporto de McCarran, em Las Vegas.
O Hacienda Hotel funcionou de 1956 até 1996, quando o prédio original foi demolido e ocupado pelo hotel-cassino Mandalay Bay.
Fontes: AOPA, Disciples of Flight
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História expetacular. Parabéns pelo trabalho. Obrigado.
manutençao por hora de voo e para os fracos