Na década de 80, o Brasil mantinha relações um tanto ambíguas no cenário internacional. Enquanto se posicionava na maior parte das vezes contra as nações comunistas e socialistas, o governo apoiava a venda de armamentos para países árabes que estavam sob influência da União Soviética como o Iraque e a Líbia. A situação era cômoda por conta da distância do foco das tensões, mas um episódio inesperado colocou nosso país na rota da Guerra Fria.
O que deveria ter sido mais um domingo tranquilo no Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, em Manaus (AM), acabou se transformando num espetáculo midiático com boatos de ameaça de guerra. No dia 17 de abril de 1983, três cargueiros Ilyushin Il-76 com bandeira de Líbia foram retidos pela Força Aérea Brasileira (FAB) no terminal manauara.
Horas antes dos jatos de carga líbios aterrissarem em Manaus, um turboélice C-130 Hercules da força aérea líbia que acompanhava os Il-76 havia realizado um pouso alternado no Aeroporto Gilberto Freyre, em Recife (PE), devido a uma pane de motor, e também acabou bloqueado.
Segundo os tripulantes árabes, as aeronaves transportavam remédios e alimentos para vítimas de um terremoto na Colômbia, mas antes deveriam fazer uma escala técnica de reabastecimento em Manaus, o que já havia sido previamente autorizado pelo controle de tráfego aéreo brasileiro.
Possivelmente alertados por autoridades dos EUA (esse detalhe nunca foi esclarecido), equipes de segurança nos aeroportos de Manaus e Recife decidiram inspecionar a carga das aeronaves líbias. Após a verificação, foi descoberto que os aviões estavam repletos de armas e que seu real destino era a Nicarágua, país na América Central que enfrentava uma guerra civil desde 1978.
De acordo com relatos de jornais brasileiros da época citando o “relatório oficial” da FAB , os quatro cargueiros transportavam fuzis russos, canhões franceses, munição da Ucrânia e um jato militar L-39 Albatros desmontado. Rumores ainda apontavam que muitas das pessoas que estavam a bordo dos aviões líbios eram “terroristas” que seriam enviados a El Salvador, outro país da América Central que também passava por conflitos internos nesse tempo.
Era o começo de um intricado incidente diplomático que envolviam interesses comerciais e políticos entre o Brasil e a Líbia, que era governada a mão de ferro pelo ditador Muhamar al-Kadhafi.
Suposta ameaça de Kadhafi ao Brasil
Segundo relato de Mário Adolfo, jornalista que acompanhou o incidente de perto a serviço do jornal amazonense “A Crítica”, corria a informação de que Muhamar Kadhafi, ao saber da retenção das aeronaves, teria ameaçado invadir o espaço aéreo brasileiro e resgatar a força seus cargueiros em Manaus e no Recife.
Com o boato no ar, o Coronel Gélio Fregapani, oficial do Exército Brasileiro que comandava a operação em Manaus, mandou evacuar o aeroporto, cancelou os voos comerciais com destino ao terminal, expulsou a imprensa do local e determinou que todas as luzes do aeródromo fossem apagadas.
“A partir dali, o aeroporto mergulhou num silêncio mortal. Todos quietos esperando o ‘ataque’ de Kadhafi, considerado um maluco, sanguinário e que não temia nada. A noitinha começou a chover e os jornalistas encharcados se acomodavam por trás dos arbustos, acocorados, observando de longe, desconfiando que seriam, num futuro muito próximo, testemunhas ocular do estopim para a Terceira Guerra Mundial”, escreveu o jornalista Mário Adolfo em seu blog.
A retenção dos aviões líbios gerou um intenso debate entre as autoridades no Brasil, que nesse tempo era governado pelos militares. O presidente dos EUA Ronald Reagan pressionava o presidente João Figueiredo a confiscar toda a carga dos aviões líbios que seria enviada ao grupo revolucionário Frente Sandinista de Libertação Nacional, combatidos pelos americanos. Na outra ponta, Kadhafi ameaçava cancelar a compra de 100 turboélices Tucano da Embraer, uma negociação que nunca foi concluída.
50 dias tomando caipirinha
Durante aquele mês de abril em 1983, equipes de reportagem acompanhavam diariamente o caso no aeroporto de Manaus, onde os aviões eram vigiados pelo Exército. A imprensa também acompanhou de perto os 38 tripulantes líbios, que ficaram hospedados no Hotel Tropical à margem do Rio Negro, com direito a banhos de piscina, passeios pela capital amazonense e festas regadas a muito álcool, o que era proibido na Líbia, país que segue os costumes muçulmanos.
Passados 50 dias de crise, a diplomacia brasileira conseguiu se acertar com a Líbia. Os armamentos não seriam confiscados – como Reagan desejava -, mas os aviões teriam de retornar diretamente para Trípoli, em vez se seguirem para a Nicarágua e abastecerem a Frente Sandinista
Ficou decidido que os aviões de Kadhafi deveriam retornar “em fila”: só quando a primeira aeronave chegasse na Líbia, a segunda seria autorizada a decolar do Brasil e assim sucessivamente. Era uma forma de garantir que nenhum dos aviões se desviasse rumo à Nicarágua.
A despeito da crise diplomática com o Brasil, a Líbia continuou abastecendo os Sandinistas na América Central e o grupo revolucionário assumiu o poder na Nicarágua em 1984, com a eleição de Daniel Ortega – que foi reeleito em 2011 e até hoje segue na presidência do país.
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