Para muitos um mito. Para outros um completo irresponsável. Há 30 anos, o alemão Mathias Rust, então com 19 anos e apenas 50 horas de voo, decidiu fazer o que muitos generais do Ocidente consideravam impossível: invadir os céus da antiga União Soviética, desafiando todo um aparato de defesa anti-aérea e os temidos caças supersônicos do bloco comunista. Não só isso, tal façanha foi realizada com um avião “teco-teco”, o pequeno Cessna 172 Skyhawk.
No dia 13 de maio de 1987, Rust decolou de Uetersen, cidade próxima a Hamburgo e de sua cidade natal, Wedel, na então Alemanha Ocidental a bordo do Cessna 172, matrícula D-ECJB, que havia alugado para sua viagem e que depois se tornaria uma aventura.
A aeronave era modificada, dispensando o banco traseiro a favor de um tanque de combustível auxiliar, o que aumentava consideravelmente seu alcance. E assim o jovem piloto partiu para uma inocente viagem de duas semanas pelo norte da Europa, visitando as Ilhas Faroe, Islândia, Noruega e Finlândia.
No caminho de volta à Alemanha, porém, Rust mudou o curso do voo, algo que depois revelou já haver premeditado. Na manhã de 28 de maio, o piloto abasteceu o monomotor no aeroporto de Helsinki-Malmi, na Finlândia, e ao decolar, às 12:21, avisou o controle aéreo que seguiria em direção a Estocolmo, na Suécia. No entanto, após sua comunicação final, enquanto voava pelo Mar Báltico, o alemão virou o avião para o leste e passou a ignorar os chamados pelo rádio.
Enquanto controladores aéreos da Escandinávia tentavam contato com o Cessna, Rust começava a entrar na rota em direção aos céus da União Soviética. Ao desaparecer dos radares finlandeses, autoridades começaram a organizar um missão de resgate, utilizando meios aéreos e marítimos, já presumindo a queda da aeronave.
Às 14:29, Rust atravessou a costa do Báltico e invadiu o espaço aéreo da Estônia, então uma das repúblicas soviéticas, e apontou a aeronave em direção a Moscou. Nesse mesmo horário a aeronave foi detectada pelos primeiros radares de defesa aérea soviéticos e o controle local tentou contato com o “invasor”, que novamente manteve o rádio em silêncio.
Sem responder aos chamados na Estônia, o pequeno avião entrou na mira de três divisões de mísseis SAM, que passaram a segui-lo por algum tempo, mas sem permissão para atacar. Dois caças MiG-23 também foram despachados para investigar. Um deles obteve contato visual com o monomotor e pediu permissão para abatê-lo, o que foi negado. Nessa ocasião, o piloto soviético ainda confundiu o Cessna com um Yak-12, um monomotor popular na URSS.
Logo após o breve encontro, os caças, que precisavam retornar à base, perderam contato com o monomotor. Em seguida, para evitar nuvens densas, o piloto alemão passou a voar baixo e desapareceu dos radares. O controle soviético, contudo, restabeleceu o contato com o Cessna em diversas momentos quando ele voltava a altitudes mais elevadas. Mas a sorte estava ao lado do piloto alemão de uma forma que ele não poderia imaginar.
Confusão soviética
Já voando sobre a Rússia, na região de Pskov, o avião de Rust foi novamente detectado por radares soviéticos, mas nessa área eram comuns voos de aeronaves pequenas com pilotos em treinamento, e o alemão acabou confundido como um aviador local e considerado “amigo”.
Mais adiante, perto de Torzhok, o avião pilotado por Rust foi novamente confundido pelo controle aéreo soviético, desta vez como um dos helicópteros que participavam de uma missão de resgate na região.
Por volta das 18 horas, contra todos os prognósticos, o Cessna surgiu nos céus de Moscou. O plano original de Rust era pousar dentro do Kremlin, a sede do governo da União Soviética, mas enquanto sobrevoava a edificação mudou de ideia, com medo de que a KGB (serviço secreto soviético) o prendesse e negasse o incidente. Desta forma, decidiu pousar em plena Praça Vermelha, em meio ao tráfego de pedestres, próximo a famosa Catedral de São Basílio.
E a sorte, que havia acompanhado Rust durante todo o voo, mais uma vez esteve presente no momento no pouso. Na manhã daquele dia, cabos elétricos do trólebus que passava pela Praça Vermelha haviam sido retirados para manutenção. Caso isso não tivesse ocorrido, pousar naquele local seria praticamente impossível…
Em solo, o piloto alemão foi recebido por curiosos. Quando perguntando de onde era, Rust respondeu “Alemanha”, fazendo os presentes pensarem se tratar de um cidadão da Alemanha Oriental. Quando disse que era da Alemanha Ocidental, todos foram surpreendidos. Duas horas mais tarde, ainda ao lado da aeronave, o piloto alemão foi preso pela polícia moscovita.
Por que o Cessna não foi abatido?
Em 1987, pode-se dizer que URSS já havia estourado a cota de desastres e erros crassos. O acidente nuclear em Chernobyl, na Ucrânia, não havia completado nem um ano, e o soviéticos também não suportavam o vexame do afundamento de um submarino (o K-219) com mísseis nucleares em plena costa leste dos EUA, em outubro de 1986.
A URSS também era muito criticada no mundo todo por ter abatido por engano dois aviões comerciais, ambos da companhia Korean Airlines – os voos KAL 902, em 1978, e o KAL 007, em 1983. Por conta dessas experiências, o país passou a tomar maiores precauções em situações com aeronaves invasoras, como foi o caso do Cessna comandado por Mathias Rust, que em nenhum momento foi confirmado como hostil.
Consequências da aventura
O pouso do pequeno Cessna na Praça Vermelha abalou as estruturas do governo soviético e envergonhou de forma irremediável as forças armadas do país. Mikhail Gorbachev, o último líder da URSS, logo após o incidente demitiu os então poderosos Sergei Sokolov, ministro de defesa, e Alexander Koldunov, comandante das forças de defesa aérea soviética, além de mais de uma centena de outros oficiais de diferentes áreas militares.
Já Mathias Rust, depois de preso, foi julgado em setembro de 1987 e condenado a quatro anos em campo de trabalho de regime geral. O piloto alemão foi acusado de vandalismo, desrespeito às leis da aviação e violação de fronteira. A sentença, porém, foi modificada e Rust acabou enviado a uma prisão temporária de segurança máxima em Moscou.
Dois meses após o julgamento, Ronald Reagan, então presidente dos EUA, e Gorbachev assinaram um tratado para eliminar armas nucleares de alcance intermediário na Europa e, como consequência, a corte soviética, em um gesto de boa vontade, concordou em libertar Rust em agosto de 1988. Ao todo, o alemão ficou 432 dias preso na URSS.
Quando retornou ao seu país, Rust revelou que seu plano era criar uma “ponte imaginária” entre a Europa e a URSS e colaborar para diminuir as tensões da Guerra Fria. Três anos depois, a União Soviética foi dissolvida e as antigas republicas socialistas abriram suas portas ao mundo todo.
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