Pode ser mais fácil se tornar o homem mais poderoso do planeta do que ser um empresário bem-sucedido do transporte aéreo? Se a pergunta envolver a história de Donald Trump, a resposta será – sim.
Eleito em 8 de novembro de 2016 como o 58º presidente dos Estados Unidos da América, Trump passou a comandar o maior poderio militar já visto na história da humanidade, uma força cujo componente nuclear pode, sozinho, varrer a vida na Terra. Mas, no início dos anos 90, este mesmo Donald Trump amargou um fracasso empresarial completo, com a derrocada de uma companhia aérea que mal conseguira ter três anos de operações.
Curiosamente, esta história tem sido aparentemente apagada da biografia oficial de Trump. Ele não a cita uma única vez em suas inúmeras “memórias” e livros de auto-ajuda, havendo uma única exceção – na obra publicada em 2008, “Trump Never Give Up: How I Turned My Biggest Challenges Into Success”, ele reconhece que a sua companhia aérea “nunca gerou real lucratividade”. Mas, em seu estilo típico, não aceita responsabilidade alguma pelo fracasso, preferindo culpar fatores da época e os riscos do mercado do transporte aéreo. Assim, enquanto outros de seus percalços foram transmutados em algo “inspirativo” em sua narrativa, a sua “aventura aérea” permaneceu como uma renegada, e isto talvez tenha a ver com Trump nunca haver conseguido que sua empreitada produzisse o faturamento para ao menos pagar a dívida criada pelo milionário ao adquirir a empresa.
Em fins dos anos 80, a situação financeira da Eastern Air Lines foi se tornando cada vez mais crítica, e a companhia passou a vender suas aeronaves e rotas. Entre suas atividades, o serviço shuttle (ponte aérea) Northeastern era, entretanto, uma operação lucrativa, e havia sido estruturado como uma companhia à parte, então dirigida por Bruce Nobles. Ela foi, portanto, adicionado ao catálogo da Eastern que estava à venda, percebendo-se nela a possibilidade de gerar fundos razoáveis na transferência de seu controle.
Apesar de seu faturamento, porém, a empresa de shuttle não conseguiu evitar uma prolongada (e muito desgastante) greve de seu pessoal técnico de terra, e foi exatamente no meio desta que o então já milionário, e investidor, norte-americano, Donald Trump, adquiriu o controle da empresa, em 5 de outubro de 1988. Em junho do ano seguinte, a aquisição tinha sido completada, financiada por um empréstimo de US$ 380 milhões, via um sindicato de 22 bancos privados. Trump vencera o outro interessado em adquirir a companhia, a America West Airlines.
Como seria de se imaginar tratando-se do egocêntrico magnata, foi adotado o seu nome na empresa, e assim a Trump Shuttle iniciou seus serviços em 23 de junho de 1989, com o código designador de voos da IATA, TB. O serviço era feito com Boeing 727 (uma frota de 22 exemplares, nas versões -100 e -200), com voos de hora em hora entre o Aeroporto de La Guardia, de Nova York, para o Aeroporto Internacional Logan, em Boston, e o Aeroporto Nacional de Washington “Ronald Reagan”, em Washington DC; além de serviços regulares entre La Guardia e o Aeroporto Internacional de Orlando, na Flórida.
Com seu estilo próprio, e tão controverso, Trump anunciou seus planos numa concorrida coletiva de imprensa, em 12 de outubro de 1988, e no início do ano seguinte, prestes a se iniciarem os serviços da Trump Shuttle, quando perguntado se temia a concorrência (na ponte aérea Nova York-Boston) da então toda-poderosa Pan American Airways, respondeu – “eu não voo com eles. Estão perdendo dinheiro e seus aviões são velhos”.
Obviamente, Trump desviava o foco do fato da própria frota da Trump Shuttle ser bastante “veterana” (sua idade média era de 25 anos), incluindo o mais antigo Boeing 727 entregue para a Eastern, um -100. Além disso, para se aquilatar o efeito das palavras de Trump, é bom lembrar que, em 21 de dezembro de 1988, o Voo 103 da Pan Am fora alvo de um dos piores atentados terroristas da história, com uma bomba levada a bordo fazendo o Boeing 747-100 “Clipper Maid of the Seas” explodir em voo de cruzeiro, sobre a cidadezinha de Lockerbie, na Escócia, com a morte de todos os ocupantes (243 passageiros e 16 tripulantes), mais 11 pessoas em terra. Até mesmo o diretor de marketing da nova companhia, Henry Harteveldt, enfureceu-se com a bravata – “eu lhe disse que não se critica a manutenção de outra companhia. Isso é errado. (…) E ainda havia muitas pessoas, especialmente na área de Nova York, que haviam perdido familiares e amigos no Voo 103, e ainda estavam muito sensíveis – e enfurecidas, compreensivelmente”.
E continuando, Harteveldt comentou que “karma é uma droga! Um pouco mais de três meses após o início de nossos voos, um dos nossos Boeing 727 pousou com a perna do nariz do trem de pouso ainda recolhida, no Aeroporto Logan, em Boston”. Ele conta que a companhia foi “inocentada” na investigação do episódio, e que os pilotos e tripulantes reagiram à altura, mas mesmo assim, “foi muito, muito embaraçoso”.
É verdade que o jovem (tinha então apenas 43 anos) milionário empresário e investidor não era um completo neófito no transporte aéreo comercial. Antes da nova companhia, já possuía um serviço shuttle de helicópteros em Atlantic City, New Jersey. Este operava três Sikorsky S-61 e dois Boeing Model 234 (versão comercial do Chinook), além de um único Eurocopter AS332 Super Puma, como aeronave executiva. E Trump tinha planos de expandir o serviço dos helicópteros de Manhattan para o La Guardia, e voos regulares destes entre Nova York e os Hamptons.
Harteveldt cuidou de diversos aspectos da companhia, como a pintura das aeronaves, design da cabine, a publicidade, construção da nova marca, programa de viajante frequente, etc. Mas, principalmente na fase inicial de lançamento da empresa, o próprio Trump envolveu-se profundamente, definindo inclusive detalhes da revista de bordo, mas dando ênfase sobretudo às questões de relações-públicas e publicidade – afinal, eram os anos 80, muito antes da internet e das mídias sociais, de modo que estas duas áreas eram de fato cruciais para a criação da imagem da empresa, e seu posicionamento na mente do público.
Nesta fase, Donald repetia que não se podia esquecer que se tratava da empresa “Trump” de shuttle, assim enfatizando a sua visão de ter um serviço diferenciado, de luxo, e esta sua visão resultou num investimento pesado na renovação das aeronaves, incluindo a cabine de passageiros, que Trump desejava que fosse “luxuoso”. Todo o trabalho custou cerca de 4 milhões de dólares (na época) por aeronave (sendo cerca de US$ 500 mil apenas nos itens de identificação visual da nova companhia) e, claro, também pesaram nestes custos elevados a revitalização dos jatos, em motores e sistemas, pois eram alguns dos mais antigos Boeing 727 em serviço. E muitas das “visões de luxo” de Trump não eram, simplesmente, viáveis.
Também numa coletiva de imprensa, Trump disse que os aviões seriam como “diamantes nos céus”, mas Harteveldt esclarecia, anos depois, que “estávamos começando com zircônio. Afinal, eram aviões velhos com interiores de material até mesmo de baixa qualidade”. Mas impressionava, apesar disso (e assim atingia o efeito desejado por Trump) – os passageiros encontravam acabamento em folheado de madeira, fivelas cromadas nos cintos de segurança, e peças douradas nos lavatórios. Por outro lado, havia um inovador investimento em novas tecnologias. Assim, a companhia introduziu um dos primeiros serviços de auto-atendimento dos passageiros, através de quiosques em sua principal base, no La Guardia, montados em parceria com a Kinetics e também com a LapStop, uma startup que alugava computadores portáteis aos passageiros. Mas era isso que os passageiros queriam? Aparentemente, não.
Desde o início, ficou claro que os passageiros eram motivados pela conveniência da ligação aérea tipo shuttle, não por luxos, e a greve da Eastern que antecedera o lançamento da Trump Shuttle levara muitos dos usuários a migrar para o serviço shuttle da própria Pan Am, ou para a ligação ferroviária (Metroliner) da Amtrak. Apesar disso, o serviço shuttle da Eastern vinha sendo uma fonte segura de lucros desde os anos 60, com o número de passageiros crescendo mês a mês. Entretanto, em novembro de 1989, pela primeira vez, este número caiu. E voltou a cair em dezembro. Este e outros indicativos apontavam para a vinda de uma recessão econômica.
Para piorar, em 2 de agosto de 1990, o Iraque invadiu o Kuwait, detonando uma disparada no preço do petróleo – e dos combustíveis de aviação. E este processo só iria piorar nos meses seguintes.
Mas de modo algum, os fatores externos foram preponderantes no fracasso. Como já dito, a empresa oferecia um “luxo” que a maioria de seus passageiros dispensava; além disso, sua frota era de fato maior do que a real necessidade da operação. Assim, o fator de ocupação das aeronaves era consistentemente inferior ao mínimo de lucratividade (breakeven). E, acima de tudo, Trump fizera todo o investimento se amparando em empréstimos bancários, dos quais US$ 135 milhões tinham a sua garantia pessoal direta.
Assim, embora conseguisse gerar faturamento capaz de cobrir seus custos operacionais, a Trump Shuttle não conseguiria (nunca) gerar resultados financeiros suficientes para cobrir suas grandes dívidas, geradas junto aos bancos quando do processo de compra da companhia por Trump. Então, em setembro de 1990, com a inadimplência no pagamento dos empréstimos, o controle da companhia deixou as mãos de Trump e passou para os bancos credores, liderados pelo Citicorp. O cenário econômico, nestas alturas, estava entre os piores possíveis (confirmação do quadro recessivo, aprofundamento da crise politico-militar no Golfo, etc), e deste modo, o Citicorp não conseguiu encaminhar uma venda lucrativa da operação da Trump Shuttle, mesmo após longas negociações com a Northwest Airlines, e posteriormente, a American Airlines e mesmo o US Air Group.
Enfim, esta última conseguiu fechar um acordo com os bancos credores, assumindo 40% do controle da operação, e os direitos de dirigir esta por dez anos, incluindo todos os componentes operativos e administrativos, como tarifas, publicidade, promoções, manutenção e negociações trabalhistas. O acordo também dava à US Air a opção de comprar a totalidade da operação em (ou após) 10 de outubro de 1996, com o prazo máximo de 10 de abril de 1997. Assim, em 7 de abril de 1992, a Trump Shuttle deixou de existir, com sua operação sendo absorvida numa nova empresa, a Shuttle Inc., que iniciou seus serviços com a marca US Air Shuttle, em 12 de abril de 1992. Terminava assim, melancolicamente, a “aventura aérea” de Donald Trump.
A totalidade da operação foi enfim adquirida pela US Airways em 19 de novembro de 1997, assumindo o nome comercial de US Airways Shuttle. Bem mais tarde, em outubro de 2015, quando houve a fusão da US Airways com a American Airlines, sob preponderância desta, o serviço se tornou o American Airlines Shuttle.
*Matéria publicada originalmente na edição 94 da Revista Asas.
Veja mais: A história do Boeing “xing-ling”
Muito boa e interessante a história.
Parabéns.
Donald Trump é uma figura controvertida e suscita mau humor em muita gente. Então é difícil pesar o quanto uma reportagem como essa se leva por essa antipatia pela figura do próprio empresário. Ele é um cara de coragem, que “bota a cara”. ACHO QUE se fosse uma figura “do bem” para as pessoas em geral, o fato de querer uma companhia de voos shuttle luxuosa seria aplaudido, comemorado. Além disso a (boa) reportagem admite que, sim, havia problemas prévios de greve de empregados e a grande crise político-petrolífera da 1a guerra do Iraque (invasão do Kwait). Definitivamente, um bobalhão é o que ele NÃO é.