Era o auge da Guerra Fria nos anos 1960 quando a União Soviética decidiu não só disputar a supremacia do ar pelo lado militar como também do comercial. Ao iniciar o desenvolvimento de uma nova safra de aviões supersônicos avançados, o país comunista acabou protagonizando uma inusitada competição comercial e técnica com o Ocidente para ter o primeiro jato comercial supersônico da história.
Os projetistas soviéticos logo perceberam que seria necessário construir uma aeronave nova e não adaptar um projeto militar. Os requisitos para se voar a mach 2,3 (mais de duas vezes a velocidade do som) eram diferentes dos militares já que esta velocidade deveria ser constante por milhares de quilômetros e não por alguns momentos como nos aviões militares.
Na mesma época, os governos da França e Inglaterra alinharam seus estudos para desenvolver em conjunto um jato comercial supersônico, o Concorde. Começou então um período obscuro em que ambos os lados corriam para atingir suas metas á frente do outro – e com coincidências visíveis em seus projetos.
O governo comunista definiu que a aeronave civil supersônica teria quatro motores turbojatos editada em 16 de julho de 1963. Pela experiência acumulada em grandes e velozes aviões, Andrey Tupolev encabeçou a empreitada. De início, foi pensado adaptar o projeto Tu-135, mas estudos em túnel de vento revelaram problemas a serem superados como a exposição da estrutura a aquecimento cinético (no atrito com o ar) em alguns pontos e resfriamento em outros.
A engenharia deveria também levar em consideração a retração e expansão de toda estrutura da aeronave que poderia chegar a encolher até 30 centímetros. Nada menos que 200 tipos de configurações diferentes de asas foram testadas incluindo um engenhoso sistema de bombeamento de combustível das asas para tanques na cauda para compensar o deslocamento de centro de gravidade durante momentos do voo.
Finalmente os estudos do projeto Tu-144 foram apresentados pelo próprio Andrey Tupolev num mock-up a comissão soviética no verão de 1965 que o aprovou no ano seguinte. Diversas revisões do projeto foram feitas e o avião foi resguardado como trunfo político para a União Soviética naqueles anos de Guerra Fria e uma cuidadosa vigilância sobre os processos foi estabelecida para evitar erros que pudessem manchar a imagem do país.
“Concordski”
Em 9 de outubro de 1966 o protótipo estava finalizado. Iniciaram-se ensaios em solo por especialistas do centro de testes soviético. Detalhe curioso é que foi adaptado um caça MiG-21 chamado de ‘analógico’ para que os elementos aerodinâmicos do Tu-144 fossem testados em voo. Esta versão reduzida do Tu-144 tinha asas idênticas as do avião e os ensaios em vôo que começaram em 18 de abril de 1968.
A prerrogativa naquele momento era fazer o Tu-144 voar antes do Concorde o que obrigou os técnicos e engenheiros envolvidos no projeto a trabalharem em turnos de até 24 horas ininterruptas. O primeiro voo tinha caráter secreto e que poucos sabiam a data e hora.
A data original seria de 20 de dezembro, mas o clima frio naquele inverno moscovita adiou o voo para o último dia do ano de 1968, o que ocorreria na presença do próprio Andrey Tupolev e seu filho Alexei, mais técnicos envolvidos no projeto. As condições climáticas do voo não eram nada favoráveis sendo observado neblina, precipitação de neve e nuvens condensadas a 300 metros.
Apesar disso, o voo transcorreu sem problemas em todas as suas fases. Muitas modificações visíveis em função dos testes em voo foram implementadas na sequência do projeto da aeronave de série. Praticamente foi construído um outro avião, não esquecendo que o primeiro protótipo tinha o caráter de aeronave demonstradora de tecnologia e implementação de técnica.
Quando foi descoberto pelo Ocidente, o Tu-144 acabou dando origem a várias teorias de espionagem graças a semelhança com o Concorde. O apelido ‘Concordski’ surgiu ao mesmo tempo que histórias sobre perseguições a espiões da KGB em Paris e prisões em bistrôs. Também foi ventilada a hipótese de que em um determinado momento no projeto dos dois supersônicos, acordos foram feitos de cooperação tecnológica entre os escritórios de projetos europeu e soviético.
Na prática, no entanto, o supersônico da Tupolev tinha algumas diferenças de conceitos como a existência de ‘canards’ retráteis para ajudar a controlar a velocidade e direção do avião durante a aproximação. Ou, então, no fato de ter longas entradas de ar dos motores, ao contrário do projeto europeu. Mas o que mais evidenciou a semelhança entre eles foi o sistema de articulação do nariz de ambos os aviões, que se inclinavam para baixo para facilitar a visão dos pilotos – uma coincidência difícil de acreditar.
O Tu-144 podia alcançar a velocidade máxima de 2.800 km/h, o que o coloca entre os 10 aviões mais rápidos de todos os tempos, mas voava normalmente a velocidade de cruzeiro de “apenas” 2.450 km/h, ritmo que permitia viajar 7.600 km em apenas três horas. O modelo da Tupolev também podia carregar mais passageiros que o Concorde: 167 ocupantes contra 120 do concorrente anglo-francês.
O acidente no salão de aviação em Paris de 1973
Até então, o projeto russo estava mais adiantado que o complexo e caro avião franco-britânico, mas em junho de 1973 essa história mudaria. O governo soviético resolveu apresentar o novo Tu-144S 004 prefixo 77102 em grande estilo no maior show aéreo do mundo, o Salão Internacional de Aviação de Le Bourget, justamente onde já se encontrava o Concorde.
No dia 3 aconteceria o que seria o segundo voo do Tu-144 no evento. Pouco antes da decolagem, a tripulação do Tu-144 foi informada que seu tempo de voo havia sido reduzido à metade pela torre – desde o início do dia sabia-se que o Tupolev e o Concorde teriam os mesmos tempos de apresentação.
O piloto do Tu-144 manobrou para uma passagem em baixa velocidade com o bico estendido quando nesse momento a 1,3 mil metros e em curso paralelo um Mirage IIIR de reconhecimento fotográfico fazia um voo para colher imagens dos procedimentos da aeronave soviética. A tripulação do comandante Kozlov foi surpreendida pela presença já que não havia sido informada do voo do Mirage até aquele momento.
A mil metros da pista e 190 m de altitude, o piloto deu potência para cabrar (subir) com os quatro motores, mas o avião foi na direção oposta. Após tentar retomar o controle do avião sem sucesso, o Tu-144 partiu para seu mergulho fatídico. Segundos depois, a força da gravidade era tão grande que uma seção posterior das asas entrou em colapso se partindo ocorrendo a 280 m e 780 km/h.
Os restos da aeronave caíram sobre o vilarejo de Gousainville nas proximidades de Le Bourget destruindo cinco casas e danificando outras vinte. Morreram oito cidadãos franceses, além de 25 feridos nas proximidades.
Foi criada uma comissão de investigação francesa para encontrar as causas do acidente que incluía especialistas soviéticos. Segundo a comissão, o gravador de dados de voo (caixa preta) da aeronave russa foi seriamente danificado, enquanto o gravador de voz da cabine não havia sido ligado e as câmeras haviam sido destruídas. Um cargueiro An-22 levou os restos do Tu-144 para Moscou que reuniu suas partes como um quebra-cabeça para examiná-los e tentar saber o aconteceu com a estrutura.
Passado um ano do acidente foi anunciado que não houve falha da aeronave nem de construção, mas sim humana. Duas causas prováveis foram consideradas: que os pilotos foram surpreendidos com uma rota de colisão não real provocada pelo piloto do Mirage e que sucedeu em uma manobra evasiva por parte do piloto do Tu-144; ou que uma câmera no interior da cabine de comando poderia ter bloqueado momentaneamente os controles de voo da aeronave russa durante as manobras em voo.
As conclusões teriam agradado tanto os russos (que concluíram que não havia nenhum problema de projeto com o Tu-144) quanto para os franceses que livraram o piloto do Mirage IIIR de responsabilidade no acidente. Depois disso todo o material relatado pela comissão teve caráter secreto.
Após a investigação, o Tupolev supersônico seguiu em testes e acabou entrando em serviço pela companhia estatal russa Aeroflot, mas tempos depois mais um acidente, em maio de 1978, sepultou de vez os planos da União Soviética de ter um serviço supersônico regular. O Tu-144D foi retirado de serviço e o último exemplar foi produzido em outubro de 1984 com um total de 16 aeronaves, que realizaram 2.556 voos somando 4.110 horas de duração.
O jato seguiu em uso militar pela força aérea soviética e há alguns anos foi reativado para experiências da Nasa, a agência americana, isso claro, após o fim da Guerra Fria.
Passados tantos anos do acidente, histórias de complôs vêm à tona até hoje com novos depoimentos de testemunhas e versões que dão outras explicações ao caso. Andrei Tupolev, o maior mentor do Tu-144, faleceu em 1972, um ano antes de um dos maiores mistérios da história da aviação.
Veja mais: Primeiro voo do Concorde completa 40 anos