Conhecer as armas do inimigo é fundamental se o objetivo é vencê-lo. A história está repleta de casos em que nações desenvolveram novas tecnologias militares espiando ou até tomando a força os recursos mais avançados de seus vizinhos. Os romanos, por exemplo, aprenderam a construir barcos mais rápidos depois de assaltarem a marinha de Cartago, enquanto os britânicos copiaram as lanças francesas e o arco e flecha galês, após enfrentamentos com esses povos. Na era moderna, os Estados Unidos repetiram esse costume bélico milenar no período da Guerra Fria ao adquirir de forma clandestina aviões de combate da antiga União Soviética.
Viveram e voaram escondidos nos EUA dezenas de caças Mikoyan-Gurevich, a MiG. A frota no país era composta por modelos MiG-17, MiG-21 e MiG-23, e operados pelo “4477th Test and Evaluation Squadron” (4477 TES), antigo esquadrão secreto da Força Aérea dos EUA (USAF).
Para trabalhar longe dos olhos de curiosos, fosse do público ou de espiões, o esquadrão ficou baseado em uma das bases mais remotas da USAF, em Tonopah, no deserto de Nevada, onde também fica a Area 51. No local isolado, o esquadrão tinha o espaço adequado para descobrir os pontos fracos dos MiGs e avaliar suas capacidades reais contra os caças “da casa”, em combates simulados.
Embora controverso, era um meio altamente esclarecedor para as forças armadas dos EUA, permitindo criar estratégias de combate contra a potencial ameaça soviética, ou de outro inimigo com um arsenal de MiGs.
Mercado negro
Repetindo o exemplo de Roma antiga, os EUA roubaram muitos dos MiGs que formaram o esquadrão secreto. Ou então, foi cúmplice do crime. Em 1977, com a ativação do grupo, a USAF conseguiu um MiG-17 e um MiG-21, aeronaves que haviam sido capturadas por Israel, de forças da Síria e Iraque, respectivamente. Ainda neste mesmo ano, o governo americano comprou mais um MiG-21, após uma negociação secreta com a Indonésia, na época um dos operadores do caça e teoricamente alinhado militarmente com a URSS.
O esquadrão “soviético” nos EUA foi apelidado de “Red Eagles” (Águias Vermelhas), em referência ao emblema da força aérea soviética, uma estrela vermelha. Ainda de propósito, o símbolo do grupo repetia a figura da estrela, mas na cor branca ou preta. Algumas das aeronaves usadas pelos americanos ainda mantinham o padrão de cores e identificações do usuário original. Já os modelos com o padrão da USAF, com a tradicional estrela azul, protagonizaram algumas das fotografias mais curiosas da aviação militar.
Segundo Gailard R. Pick Jr., autor do livro America’s Secret MiG Squadron (Esquadrão Secreto de MiGs dos EUA), a ajuda do governo israelense foi fundamental no fornecimento das aeronaves. Nos anos 1960 e 1970, Israel se enfrentou com praticamente todos os países que o cercavam, conseguindo como “espólio de guerra” recuperar os caças inimigos que faziam pousos forçados em seu território. Recuperadas, essas aeronaves eram colocadas novamente em condições de voo e analisadas. Eram tantos MiGs que Israel se deu ao luxo de exportá-los a um aliado.
Outro importante “parceiro” dos Red Eagles foi o Egito. No final dos anos 1970, as relações entre egípcios e soviéticos já não era mais tão cordial como fora desde o final da Segunda Guerra Mundial. Em meio a essa desavença, os EUA encontraram uma oportunidade para “renovar” sua frota de caças MiG-21 e MiG-23.
Na negociação realizada em segredo, o Egito não só vendeu os caças, como também passou a fornecer peças de reposição para os MiGs nos EUA.
A USAF também recorreu a China para manter a divisão ativa, mas desta vez jogando limpo. Em 1987, os EUA compraram dos asiáticos 12 jatos Shenyang F-7 (atual Chengdu J-7), a versão chinesa do MiG-21.
O terrível MiG-23
Em relato ao AviationWeek, John Manclark, comandante dos Red Eagles entre 1985 e 1987, revelou que uma dos maiores desafios do grupo era descobrir a função de cada comando no cockpit dos caças. Todos os indicadores das aeronaves eram em alfabeto cirílico, o que exigia um demorado trabalho de identificação e etiquetagem, com informações em inglês.
“Não sabíamos o que 90% dos comandos faziam. Houve um interruptor que rotulamos como BOMB EXPLODE”, revelou Manclark, a respeito do MiG-21. “Em 1985, tínhamos 26 MiGs”, contou o ex-comandante do esquadrão secreto.
“Os pilotos (do Red Eagles) não ficavam orgulhosos de si mesmos por bater um F-4. O objetivo inicial não era vencê-los, caso o fariam já no primeiro dia. Isso era um fato”, revelou Manclark, sobre o desempenho do MiG-21. Já o MiG-23…
“O MiG-23 era um pesadelo, a manutenção era um pesadelo. Os caras odiavam voar nele. Manobras de baixo G já faziam o nariz balançar de um lado para o outro. A estabilidade era terrível, embora fosse mais rápido do que qualquer outra ‘coisa’ que tivemos”, completou Manclark. Ainda na mesma reportagem, o ex-comandante afirmou que não tem autorização para falar sobre determinados detalhes dos Red Eagles.
Curiosidade mortal
Em 13 anos de operações, os Red Eagles registraram três acidentes, todos com mortes. Mas como explicar a morte de um piloto americano que comandava um caça soviético e em solo nacional? O comando militar dos EUA optou por abafar os casos ou então mentir.
O primeiro acidente aconteceu em agosto 1979, com um MiG-17 comandando pelo tenente Hugh Brown, da Marinha dos EUA (US Navy). A aeronave realizava uma simulação de combate contra um F-5, quando entrou em parafuso a baixa altitude, insuficiente para o piloto ejetar. A aeronave caiu no deserto de Nevada, próximo a base de operações, matando Brown no mesmo momento.
O caso, porém, não teve repercussão. O mesmo aconteceu com o segundo acidente registrado pelo grupo, com um MiG-23 que matou o capitão Mark Postai, da USAF, em outubro de 1982. Já o terceiro foi como a explosão de uma bomba na base do esquadrão.
Em um ato considerado imprudente, o general Robert M. Bond, na época vice-comandante da USAF e sem experiência em aviões soviéticos, durante uma visita ao 4477 TES insistiu para pilotar um MiG-23, e foi atendido. O resultado foi um acidente mortal.
Momentos após o desastre, o comando da USAF informou que o militar havia morrido em um acidente com um “avião especialmente modificado para testes”. A morte de um general de três estrelas, que normalmente não atuam em arriscadas missões de testes, chamou a atenção da imprensa, especialmente pelo fato da força aérea não revelar detalhes sobre a aeronave.
Eventualmente, no mesmo ano, a USAF explicou mais detalhes sobre o acidente e admitiu a existência do programa de testes com aeronaves da URSS. O general Bond perdeu o controle do MiG-23 enquanto voava em velocidade supersônica. Mesmo conseguindo ejetar, o piloto morreu. Os três militares mortos receberam condecorações póstumas em 2006.
Apesar de já ser conhecido no passado por boatos e breves declarações oficiais, informações oficiais sobre o esquadrão secreto foram reveladas somente em 2006, quando a USAF finalmente decidiu falar sobre o tema. Ainda assim, muitos detalhes do que aconteceu na base em Tonopah permanecem em sigilo.
Contraespionagem soviética
Testar aviões do inimigo não era uma exclusividade dos EUA. Embora ainda totalmente obscuros, programas como o Red Eagles também foram realizados na União Soviética, que conseguia caças do Ocidente com ajuda de seus aliados no Oriente Médio.
Uma das raras evidências sobre aviões ocidentais capturados é uma foto tirada em solo soviético, na qual aparecem supostamente um McDonnell Douglas F-4 Phantom II, americano, e um Dassault Mirage III/5, fabricado na França. Também circula um boato de que o Irã teria emprestado a URSS alguns de seus caças F-14 Tomcat, na época um dos mais letais do mundo.
Os EUA, porém, tinham um enorme vantagem a seu favor: diversos pilotos soviéticos e de outras nações alinhadas ao mesmo bloco sonhavam com o estilo de vida americano. Como resultado, foram registrados casos de deserção, em que os militares simplesmente fugiam de seus países com os caças e os entregavam de bandeja para analistas ocidentais. Por outro lado, na Guerra Fria nenhum piloto americano desertou para o lado do bloco comunista.
Foi graças a um desertor que os militares norte-americanos tiveram o primeiro contato, em 1950, com o MiG-15, e mais adiante, em 1976, o MiG-25, na época o avião mais rápido do mundo, porém repleto de pontos fracos, como os engenheiros ocidentais descobriram.
Com o final da Guerra Fria e o colapso da União Soviética, os Red Eagles não eram mais necessários, até porque já se sabia tudo sobre os aviões concorrentes. Os últimos voos do esquadrão foram realizados em 1988 e dois anos depois a USAF desativou definitifamente o programa secreto e os MiGs “americanos”. Ou não, quem garante?
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Thiago Vignoles
Parabens pelo excelente texto. Apenas uma correção, quando os aparelhos indonésios foram adquiridos, este país já havia passado para o lado ocidental, apos um golpe que derrubou Sukarno. Se não me engano, vieram em troca de caças americanos… Aeronaves como o Mig-27 e os mais modernos Mig-29 e Su-25 e Su-27 não foram testados nos EUA? No caso de Israel, parece que os Mig-29 foram avaliados, vindos da própria Russia…
Sobre o Phantom F-4 e o Mirage em solo soviético, uma boa pergunta: como foram parar lá? Podem ser maquetes para confundir a inteligência ocidental. Mas para levantar hipóteses tem de saber o ano da foto: regimes “amigos” que viraram inimigos (Irã) e repassaram a URSS, algum sequestro tipo filmes de James Bond (não divulgado na imprensa) ou casos raros de pilotos ocidentais desertarem para o outro lado.