A triste e silenciosa queda do Mike Romeo Kilo

Acidente ocorrido há 25 anos em Congonhas com o Fokker 100 da TAM ainda está vivo na mente de muitas pessoas, mas será que ainda é seguro operar no aeroporto paulistano?
(foto: Rémi Dallot)
O PT-MRK, Fokker 100 que se acidentou há 20 anos: será que Congonhas é mesmo seguro? (foto: Rémi Dallot)

O dia 31 de outubro de 1996 começou com uma bela manhã de sol. Ex-funcionário da TAM (havia me desligado pouco mais de um ano antes), trabalhava então na pequena companhia regional Passaredo no aeroporto de Guarulhos à noite e estava acordado na cama por volta de 8h25 quando ouvi um ruído de turbina cessar abruptamente.

Como morava próximo de Congonhas e frequentava o aeroporto diariamente, estava acostumado a ouvir testes de motores nos hangares, que eram interrompidos de uma maneira semelhante com aquele som, ou seja, de forma ‘seca’.

Confesso que nem passava pela minha cabeça imaginar o que veria logo em seguida ao me levantar e passar pela sala de estar. Olhando pela janela estava uma enorme cortina de fumaça negra que se levantava atrás de uma rua próxima a avenida Eng. George Corbisier, na região do Jabaquara, bairro ao sul do aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

Não era preciso um conhecimento tão profundo em aviação para chegar a triste conclusão que um acidente aéreo havia ocorrido. Logo em seguida, liguei o rádio e a TV à espera de alguma informação.

Também fiquei atento a sinais que confirmassem a gravidade do caso mas, para minha surpresa a rotina parecia dominar aqueles minutos antes das 9 horas da manhã. Nenhum ruído de sirene ou helicóptero sobrevoando a área. Ao contrário, o trânsito seguia normal e até mesmo alguns aviões continuaram decolando do aeroporto.

Muitos dos antigos Fokker 100 da TAM continuam em operação com empresas no Irã (Aero Icarus)
Muitos dos antigos Fokker 100 da TAM continuam em operação com empresas no Irã (Aero Icarus)

Diferentemente de hoje, não havia smartphones ou redes sociais para compartilhar o acidente em tempo real. Em outras palavras, o sofrimento das pessoas envolvidas naquele que seria o mais grave acidente aéreo de Congonhas até então estava restrito à rua Luis Orsini de Castro, a 460 metros do prédio onde morava.

Aos poucos, no entanto, o som dos carros de bombeiros começaram a surgir, o tráfego aéreo foi interrompido e os primeiros helicópteros Robinson de emissoras de rádios surgiram noticiando o acidente.

Não esqueço desse dia porque foi quando entendi que um acidente aéreo com um jato comercial como o do PT-MRK, o Fokker 100 da TAM em questão, não se pareceu em nada com as cenas retratadas em filmes ou documentários.

O jato do voo 402 que decolara com destino ao Rio de Janeiro com 96 pessoas a bordo se precipitou na rua sem que barulho ou alguma explosão fosse ouvida do meu ponto de vista, e também sem destruir tantos imóveis quanto se espera num suposto pouso forçado (do ângulo de vista em que estava, é bom ressaltar).

Apesar ilhado em densa área urbana, Congonhas deve ter seu movimento de aviões ampliado com a concessão à iniciativa privada (Ricardo Meier)

Meio fio em chamas

Os primeiros relatos dos repórteres causaram mais confusão que eslarecimentos. Falou-se num avião de pequeno porte, depois um jato executivo. Apenas mais tarde, uma citação ao nome da TAM. E logo alguém, enfim, identificou a aeronave, um Fokker 100.

Havia trabalhado por vários anos na empresa do Cmte. Rolim e tinha um apreço pelo jato holandês por ter voado como comissário por um curto período. Não me conformava como não conseguiam diferenciar um avião daquele porte de um jato pequeno.

Resolvi ir até o local, na esperança de, quem sabe, ajudar a identificar o avião. Segui justamente para a região onde a fumaça acabava, mas só aí entendi que ela provinha da queima do querosene que desceu em chamas pela rua, espalhando os sinais do desastre.

A área já estava isolada e o que vi de longe foi o que restou da cauda do avião em meio a uma cena de guerra, com casas, alumínio retorcido e muita fumaça, agora controlada – além do cheiro de querosene.

Felizmente, não presenciei a cena mais marcante do acidente, dos corpos enfileirados, entre eles um ex-colega de TAM que havia entrado comigo na mesma turma no final de 1990. Marcelo Binotto era um dos comissários do voo 402 e trabalhou na TAM Jatos Executivos pouco antes de entrar para o time de tripulantes da companhia aérea.

Engolido pela cidade

Vinte cinco anos depois, o calor da indignação e das críticas ao acidente abrandaram. O Fokker 100 deixou de operar no Brasil há alguns anos, mas segue voando mundo afora e tem uma folha de serviço com poucos acidentes, apesar da péssima fama que ficou após outros problemas com aparelhos da TAM.

Já o aeroporto de Congonhas continuou crescendo e ampliando sua participação até 2007 quando outro acidente fez com que o governo federal limitasse os voos e o porte das aeronaves, algo que está sendo revisto hoje, com a concessão à iniciativa privada prevista para 2022.

Se o aparelho envolvido na catástrofe de 25 anos atrás teve o defeito corrigido, resta saber qual deveria ser o destino de Congonhas. Um dos mais rentáveis aeroportos do Brasil, o terminal é uma das poucas jóias que restaram nas mãos da Infraero.

A empresa está executando algumas importante reformas, incluindo a tecnologia EMAS, que está sendo instalada nas cabeceiras da pista principal e tem como característica um piso deformável, capaz de frear aviões que passarem do ponto crítico.

No entanto, o risco de repetirmos aquela triste manhã de quinta-feira permanece. Cercado por regiões densamente habitadas surgidas muitos anos depois de ser aberto, Congonhas movimentou nada menos que 22,3 milhões de passageiros em 2019 que chegaram e saíram entre 6 horas e 22 horas, afinal ele fecha por um bom período por questões urbanas, algo que não ocorre com  Guarulhos, por exemplo.

Congonhas vs. Midway
Aeroporto americano, mesmo no meio da cidade, tem mais área de escape e leva vantagem por estar mais perto do nível do mar

Operação restrita, como o London City

O que incomoda na pista principal do aeroporto é a falta de área de escape e o fato dela ficar num platô, a cerca de 15 metros no nível de ruas e avenidas em suas cabeceiras. Mesmo o aeroporto de Midway, em Chicago, tido como um ‘primo’ de Congonhas, não oferece tanto risco quando o aeroporto paulistano.

Lá, embora as duas pistas principais tenham quase 2.000 metros de piso, elas contam com ‘stopways’, áreas preparadas para casos de decolagens e pousos abortados. O aeroporto americano ainda conta com a altitude de 180 metros para que os voos decolem num espaço menor que Congonhas. Este, por sua vez, tem 1.940 metros de comprimento e nenhuma margem em caso de um avião varar a pista. De quebra, o terminal fica a quase 800 metros de altitude, onde é necessária uma distância maior de corrida por conta da menor pressão do ar.

Na impossibilidade de ser substituído por um novo aeroporto na região (algo que hoje parece agradar apenas aos moradores do entorno), Congonhas poderia seguir o exemplo do London City Airport, o pequeno aeroporto a leste de Londres.

Com uma pista de pouco mais de 1.600 metros ao nível do mar (maior que Santos Dumont, por exemplo), mas com quase 2,2 km de pavimentação, o bem localizado terminal fica distante do centro da capital britânica assim como Congonhas, porém, tem várias restrições de operação, seja de peso dos aviões (o maior deles é o Embraer E190-E2) quanto de emissão de ruído.

O London City é um aeroporto de deslocamentos rápidos como os da ponte aérea Rio-São Paulo e também para voos executivos, vocação que Congonhas perdeu em boa parte por conta da restrição de slots. Com isso, apenas 84 mil aviões decolam e pousam do aeroporto londrino por ano, equivalente a 38% do movimento do terminal paulistano.

Difícil imaginar uma redução no movimento de Congonhas sendo ele a principal receita da Infraero e da futura concessionária, e os passageiros e companhias aéreas abrirem mão da praticidade de ter um aeroporto bem no meio da cidade, mesmo que o pesadelo de um novo acidente entre os mais de 600 pousos e decolagens realizados em média todos os dias continue a assombrar a região.

Matéria publicada originalmente em 31 de outubro de 2016 e atualizada com novas informações.

O E190-E2 da Helvetic decola do London City (Embraer)

Veja mais: Por onde voam os últimos Fokker 100

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  1. Considero também uma irresponsabilidade sem paralelo no mundo da aviação arriscar a vida de tantos passageiros, permitindo a operação de aviões com massa acima de 60t na decolagem em Congonhas. Se os planejadores pensassem de maneira inteligente veriam que se pode destinar as operações de aeronaves maiores para Guarulhos e Viracopos e manter em Congonhas apenas aeronaves com limite de massa até 60t na decolagem. Para isto não prejudicar os usuários deveria haver uma linha de trem rápida interligando os três aeroportos. Assim, quem estivesse no centro se destinaria a Congonhas e tomaria um avião lá capaz de atingir um dentinho de até 3500 km dali o que cobre o Brasil inteiro, com aviões de até 130 passageiros. Para locais mais distantes ou em aviões maiores poderia sair dali de trem até um dos outros aeroportos e daí tomar um voo em aeronave maior. Qualquer justificativa para manter aeronaves maiores em Congonhas é puramente de interesse comercial em detrimento da segurança dos passageiros. Eu mesmo evito ao máximo ir de avião a qualquer destino com escala em Congonhas, já que não há muitas opções em aviões menores.

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